Saturday 27 April 2013

Joseph Barros - O Festival da Árvore (1965)

Essa árvore, oh terra amada,
Não é sonho,
Não é apenas miragem fugitiva.
É a viva perspectiva,
Daquele teu futuro risonho.

Estamos em plena monção do Sudoeste geograficamente falando. Constitui a portentosa e operosa coluna vertebral da economia unilateral agrária dos países tropicais como a Índia, Ceilão, Paquistão e Birmânia.

Essa época está intima e indissoluvelmente ligada a agricultura e horticultura e é por assim dizer o cordão umbilical que nutre e alimenta a vida agrícola e vegetal desta terra desde as regiões gélidas dos Himalaias até as planuras tórridas do Camorim.

É pois natural e lógico que Vanamahotsa, este festival de árvores seja celebrado em toda a sua plenitude durante essa época pluviosa, especialmente no mês de Julho que simboliza nos domínios de geo-ciência como o coração do inverno tropical.

O Festival da Árvore tem a sua razão de ser, a sua filosofia e as suas implicações no tablado social e económico da vida dos povos das regiões tropicais e sub-tropicais.

A árvore, quer seja frutífera ou não, quer seja ela velha e secular como a árvore da gralha, ou nova e tenra como a bananeira que cresce e desaparece após o amadurecimento do seu delicioso fruto pois o ciclo da sua existência é algo curto, exerce uma influência preponderante não só no clima do país mas também na economia individual e colectiva. Daí é de grande importância a ceremónia de Vanahamhotsava, esse festival de árvore que se celebra por estes dias em todo o país.

A flora tropical é variada e multicolorida. As vastas florestas que se acham espalhadas em diversos cantos e recantos do país contem miríades de árvores de diversas qualidades. O valor medicinal das nossas plantas bastante conhecido e isto em parte explica as curas quase surpreendentes operadas pelos herbolários.

As florestas com as suas árvores constituem um poderoso factor económico. Em toda a parte a conservação e o desenvolvimento das florestas são objectos de cuidadosa e meticulosa atenção. É um facto histórico-económico (segue na 2 pagima) que as florestas de Bilbau, os pinhais da Grécia e as matas das Ilhas Britânicas proporcionavam aos povos ocidentais navios e galões. Também a Índia, a Indonésia e as Filipinas construíam juncos com a madeira das suas florestas. No Japão ainda hoje constroem chalés de madeira.

As florestas além de ser um grande arsenal de madeira é também uma espécie de fábrica e de combustível que proporciona infalivelmente calor e energia a humanidade. Além disto a floresta também influi na preservação do solo evitando a erosão da crosta terrestre bem como na conservação das águas subterrâneas. Também seriamente afecta e modifica o clima duma região que por seu turno molda a vida cotidiana do povo, pois é um facto assente nas ciências geográficas que o homem é um produto do meio geográfico em que ele vive.

Na Índia desde os tempos mais recuados da história, as florestas e as árvores mereceram grande carinho da parte dos povos e dos soberanos. O ínclito Rei Sher Shah que foi um reformador social de larga visão e um estadista dinâmico, decretou a cultura de árvores e a abertura de poços ao longo das estradas principais para que os viandantes cansados pudessem saciar a sua sede e descansar confortavelmente na sombra acolhedora das árvores e evitar a insolação devido aos ardores do sol escaldante dos trópicos. O Grand Trunk Road, a principal artéria terrestre da Índia antiga tinha árvore em toda a sua extensão para servir de abrigo aos viandantes. Nas remotas aldeias as árvores de gralha que erguiam frondosas e majestosas à beira dos templos tinham a sua importância. Era debaixo da sua ramada e ao sabor da sua frescura que os maiorais da aldeia discutiam os problemas da vida rural. Mas hoje mudaram-se os tempo e com ele os homens e os seus métodos.

O Festival da Árvore foi inaugurado em 1950 com o alto objectivo de despertar interesse na cultura sistemática das árvores no pais. De lá para cá anualmente muitas plantas de diversas e variadas espécies foram cultivadas que com o rodar do tempo afectarão não só os coeficientes económicos mas também os factores climáticos.

CX - O Gonim (1958)

“A vida é uma grande escola!” Não sei qual foi o homem que primeiro chegou a esta certíssima conclusão; mas, que o sujeito devia ser um grande realista, conhecedor das coisas e dos homems, é ponto assente.

Eu gosto da vida, gosto da rua, gosto de estar em contacto permanente com as coisas e com os indivíduos; foi a vida, com os seus trambolhões, andanças e contradanças que me forneceu os modestos alicerces em que assenta o meu “modos vivendi”.

Por isso eu gosto da vida, da rua, do campo e da serra, do mar e das suas areias, das crianças e... dos cães! Por isso eu conheci o meu amigo “Gonim”.

Foi na esplanada do “Moderno”; um Sol áspero, quente e teimoso, atirou-me para uma daquelas cadeiras feitas de caixotes de “Becks” enquanto minha garganta pedia aflitivamente um bom copo da dita. Surgiram os inevitáveis “graxas”: caras lambuzadas do pó que tragam nas ruas e na vida, camisas rotas de cor duvidosa, minúscula caixa desconjuntada, ei-los de joelhos, a nossos pés, tocando os sapatos com os seus dedos esguios e sujos, sujos do pó, que nanja das acções... a proferir o característico “Senhor, Xuxo”.

O ar límpido e bondoso, e de súplica, do olhar de gaiatos onde a maldade ainda não encontrou guarida, é, quase sempre, uma garantia de que irão receber as duas tangas e barrar horrivelmente as nossas meias. Olhar irrequieto e vivo, sempre com um sorriso são a lambuzar-lhes os queixos, eles não sentem os pontapés que a vida lhes dá em vez de carinhos, roem as côdeas de um pão que o diabo amassou; olham os privilégios da vida como coisa que não é de sua pertença e, do mundo e das coisas, têm uma ideia supinamente filosófica.

O meu amigo “Gonim” é um desses diabretes que acabo de descrever: ele surge inevitavelmente em minha rota sempre que abandono esta “Velha Cidade” para me deslocar à capital onde muito aprecio os zigazageantes movimentos dos peões que já não sabem de que lado surgem os carros, e dos malabarísticos condutores que vêem as ruas transformar-se em perigosíssimo labirinto invadido pelos peões.

O “Gonim” aparece sempre sujo, sorridente, com uma assobiadela muito sua a bailar-lhe nos lábios de adolescente, ele personifica a despreocupação e a simplicidade e felicidade: sempre tão relativa! Com um admirável espírito de camaradagem e entre-ajuda, ele pede a pomada ao colega, fornece o capital-trabalho, e, sem quaisquer discussões entrega ao “sócio” a tanga que lhe pertence: e, sempre a cantarolar, a assobiar ou a engenhocar qualquer brincadeira inocente de ai vai repetir noutra (Segue na 4a página) parte seu estribilho: “Senhor XUXO”! E eu fico pensando, como o mundo seria se os homens encarassem a vida como o meu amigo “Gonim”!... Conformado, alegre, aceitando a sua sorte com um sorriso franco e bom o “Gonim” é uma das coisas que gosto de contemplar na vida; e a vida tem tantas coisas belas!

Laxmanrao Sardessai - A Vida e a Morte (1965)

No botão da rosa,
Fresco e orvalhado,
Sorrindo à alvorada,
Eu vejo as pétalas
Crestadas, amachucadas,
Atiradas na poeira!
Mas nelas vejo
Um novo rebento
E uma nova roseira!

Na criança, recém-nascida
Que solta ternos vagidos,
Eu vejo um velho
Em mortais agonias
E nele um bebé
Loiro e rosado!

Na palmeirinha tenra
Que lança ao ar
Duas longas folhas,
Eu vejo a carcaça
Do coqueiro tombado
E nele nova palmeirinha
Mais rija do que a primeira.

Vejo na vida a morte
E na morte a vida,
E ambas abraçadas,
Confundidas,
Como irmãs gémeas
Num amplexo eterno!

Bailon de Sá - 'Contos Regionais' por Augusto do R. Rodrigues (1988)

Augusto do Rosário Rodrigues não é nome desconhecido entre nós. Já há bom tempo tem ele brindado as nossas revistas e jornais (quando estes eram redigidos em Português) com poemas, contos e dramas. Vocábulo farto, dicção feliz, este volume, uma colectânea de contos regionais, é como diria Teixeira Gomes, uma espécie de “exotismo às avessas”. São contos da época que já lá passou, da Goa antiga, policroma, caricata, supersticiosa, mas sempre saudosamente nossa. O autor percorre quase toda a gama da nossa vida social daqueles tempos: da pacatez aldeana onde o filho do batcará namora às furtivas a filha do manducar; da vida galante dos salões onde o rico e imbecil herdeiro, com a sua mamã viúva, está à busca duma noiva para lhe dar sucessores aos seus vastos haveres; dos novos ricos que se esforçam, quais macacos, em se insinuar na sociedade; do médico da aldeia, do padre vigário magricela; do tio cónego besuntoso (muito castista e grande materialista); da vida eivada de intrigas castistas, tanto irritantes como anti-cristãs, vai longa a lista dos vários cambiantes da nossa vida urbana e provincial. Essa Goa, embora seja um trago na na garganta do colossal Indostão, teve e continua a ter a sua personalidade – rara, simbiótica e propriamente sua. Mas hoje, com a invasão que ela está a sofrer de elementos alheios, a sua cultura, a sua vida social e intelectual, estão por um fio.

Augusto Rodrigues, chistoso e irónico, tem o vezo de escolher nomes esquisitos para os seus personagens tais como: D. Cebola, Dr. Pepino, Pe. Panela, etc, mas peca por exagero quando sai com um nome estrambótico como: Sancho Serapião do Santo Sepulcro Costa Paredes Malcorado! A par de contos humorísticos e picados de ironia, há uns que comovem e sensibilizam. Enfim, é um corte vertical na nossa vida social de antanho e que contrasta rudemente com o ambiente social amorfo de hoje.

Clara de Menezes - A Rainha do Concão (1964)

Reclinada num divã
De cetim e esmeraldas,
Tu, oh Goa adorada,
Dormes o teu sono secular
Nascida numa linda manhã,
Tocada pela varinha das fadas,
Tu, dama animada,
Fazes por despertar.

Teus seios entumescidos
Vertem leite em Dudsagor,
Tuas veias, os rios,
Quais pérolas em fios
Nutrem teu esplendor.

Tuas ricas entranhas
São oiro puro.
Na tua cabeça
As montanhas
Tecem-te grinaldas
De verde veludo.

Os cachos de cocos
São favos de mel
Que te enfeitam
A granel.

Rainha cobiçada
Teus pomos sumarentos
Destilam néctar de nomeada,
Matando a sede aos peregrinos
E a fome dos famintos.

Mormugão,
Nobre e invejável portão
Do palácio da Rainha
Aberto de par em par
Ao Mundo civilizado,
Coração
A palpitar
Fremente,
Aos beijos do Índico
Bem amado.
Branca pomba
Com as níveas asas abertas
Em Dabolim,
A arrulhar palavras de amor
Eternamente, sem fim,
Aos mensageiros da paz
Os coqueiros, quais soldados,
Com os seus penachos altaneiros
Impõem respeito
Aos incantos guerreiros.
Seus caules, armas naturais,
Defendem os umbrais
Do reduto da Rainha
O niro, sustento dos deuses,
Infiltro fachos de luz
No seu saber
O fenim bebida capitosa,
Excita sua paixão amorosa
Pelo desmedido prazer.

Tímida gazela,
Procura esconder-se
Nas suas ubérrimas matas,
Mas sempre os caçadores
Como piratas
Assestavam suas celas
Ou deitavam os laços
Para capturar a bela.

Ninho de aves canoras
Desde tempo imemoráveis,
Embalou os deuses
Com canções imortais.

Arrebatada ao mar
Por Paraxurama
Berço duma mescla de civilizações
Dando ao Mundo santos e sábios
Cujos nomes levados
Pelas asas da fama
Enriquecem tua coroa angelical
Com raios
De uma gloriosa chama.
E colhida para túmulo
Por Xavier,
Tu és uma janela do Ocidente
Aberta sobre o Oriente.

Rainha do Concão
Teu ceptro de diamante
Dá luz radiante
À Índia de Ashoca e Tagore.
Senhora donairosa
Parmeshwara te criou
Para ser a rosa
Mais formosa
Do jardim exuberante
O Bharat.

Carmo Azevedo - Manuel Rodrigues e a Sua Poesia (1982)

Numa pequena história da Literatura Indiana Contemporânea publicada pela Sahitya Akademi, no capítulo relativo à contribuição indiana à literatura inglesa, diz o prof. Srinivassa Iyengar que os três poetas goeses Joseph Furtado, Armando Menezes e Manuel C. Rodrigues deram, entre outras coisas, uma nova intensidade à poesia do exílio. Dos três, é sem dúvida, Manuel Rodrigues aquele em que o sentimento do exílio é mais intenso.

Mas se dos deus dois livros de versos em inglês, Songs in Exile e Homewards, aquele dá expressão à nostalgia pela terra que lhe foi berço e longe da qual vive, este exprime, com não menor intensidade, a alegria do “regresso ao lar”. Assim os dois livros, pode-se dizer, completam-se, achando-se no segundo o que faltava no primeiro.

Manuel Rodrigues poetou também em concani, embora ainda não tenha publicado a colectânea das suas poesias na nossa língua ancestral, a que já deu o título expressivo de Vonvllam, como também ainda não deu à estampa o seu livro de contos em inglês Still Life and Other Stories nem a sua peça teatral Mar’Jaquin’, que nos prometeu, quando publicou uma selecção de versos em inglês, sob o título de Selected Poems, em 1978.

Embora Manuel Rodrigues não seja um poeta goês de expressão portuguesa, objecto de estudo de António Barahona, não quis deixar e aproveitar a estadia daquele em Goa há coisa de um mês, para o apresentar ao grande poeta português, que está a preparar uma antologia critica de poetas indo-portugueses. Havia mais de uma razão para isso: primeiro, porque estudou português, antes de encarreirar para inglês, e fala fluentemente a língua de Camõesl segundo, porque traduziu Antero de Quental; e terceiro, porque tem pelo menos uma pequena poesia composta directamente em português, além de se servir de uma palavra portuguesa sem equivalente em inglês, Negagas, para uma das suas poesias.

Começarei por reproduzir aqui a sua poesia em português, dando a seguir a sua tradução em inglês pelo próprio poeta:

Nuvem

Nuvem –
Um espírito nebuloso
Flutuante
Na amplidão
Da nossa Vida:;
Solitário
Semi-revelante,
Abnegado
Cuja missão
É de regar
Todos os entes
Visíveis
E invisíveis;
E o sorriso
Que, nas belas noites de luar
Brilha nos doces lábios
Dessa virgem,
Amiga e mãe,
É um reflexo
Do espelho
Da nossa Vida.


Cloud

Cloud – a darkling
Spirit floating
In the vastness of our life
Solitary
Half-revealing,
Self-denied;
Whose one mission
Is to sprinkle
Souls of all things,
Seen and unseen;
And the smile that
In the lovely
Nights of moonlight
Lights the bright lips
Of this virgin,
Friend and mother,
Is a reflex
Of the mirror
Of our life.

Porque, no dia em que se encontrou com António Barahona, Manuel Rodrigues lhe apresentou uma poesia sua que eu traduzi aquando do meu primeiro encontrou com ele em Nova Delhi, vou também reproduzir aqui essa poesia, seguida da minha versão.

Poet to Poet

Your voice has found
An echo in my heart;
For we are bound
Although we live apart,
By a common lie.

This mortal bed we share
Is not our goal,
We must have met somewhere,
Soul to soul.
Somewhere, alone, afar,
Beyond this fleshy bar
Of you and I.

Yet we can change this earth
Into a mystic mirth
And live where we belong:

When self is purged
And we are merged
In the spirit of the Song.

De Poeta para Poeta

Se os ecos do teu carme
Repercutam dentro do meu peito
É porque invisível liame
Nos prende, a despeito
Do abismo que nos separa...

O invólucro mortal
Que nos veste
Não é o nosso destino fatal...
As nossas almas por carta,

De perto,
Se viram
Face a face,
Numa passada era,
Numa outra esfera,
Onde se abatem
Os grilhões da carne.

Ainda poderemos converter
Este triste viver
Num místico gozo,
Como no mundo deleitoso,
De onde viemos,

- Se o “eu” purgamos
E nos integrarmos
No espírito da Poesia.

Agostinho Fernandes - Goa: Vinte Anos Depois (1977)

Foi em 1958, numa tarde de calor abrasador, o suor a escorrer pelo rosto marcado já pela infinda e melancólica saudade, que deixámos Goa a bordo do paquete “Índia”, rumo a novos horizontes, a aventura e ao desconhecido...

Já lá vão cerca de vinte anos... Vinte anos de tristezas e alegrias, de esperanças e ilusões, de luta e trabalho. Vinte anos de vivência profunda nas mais árduas condições, em choques constantes com civilações que não eram as nossas, vinte anos de acrisolado amor escondido algures num cantinho do ser por este pedaço de terra perdido na imensidão do mapa.

Agora regressamos...

Meu Deus! Como Goa se modificou! Como Goa desenvolveu! Como Goa se fez adulta! Como Goa nos pareceu estranha e quase hostil!

Logo nos primeiros dias Goa mostrou-se-nos algo desconhecida, tão diferente do querido torrão que deixáramos há apenas duas dezenas de anos... A invasão do progresso já chegara até Goa... Lindos e airosos prédios de vários andares, com estruturas e matizes ocidentais, desabrocham um pouco por todo os lados...

Pangim, cidade quase bucólica de então, languidamente debruçada, estende-se agora em mostros de aço e cimento pelo Campal fora, enquanto uma enorme ponte substitui os “ferry-boats”.

Vasco da Gama, jardim florido que já foi, é, presentemente, uma amálgama de edifícios...

Mapuçá, que é feito da sua arrogante e aristocrática fidalguia?

Margão perdeu a sua ancestral pacatez para dar lugar a um reboliço constante, num ir e vir continuo e estonteante de gentes e veículos, de vozes e ruídos, de buzinas e gritos: “Quepém... Sanvordém... Sanguém..., Varcá..., Orlim..., Carmonã...” Tan-laddu”, “Tan-laddu”, “Pan-supari”...

Longas e serpenteantes fitas de negro asfalto cobrem todas as estradas e mesmo as picadas insignifiantes indo morrer nos povoados mais afastados dos grandes centros.

A corrente eléctrica invadiu agressivamente até os casebres mais humildes do interior. Aqui e acolá pululam grandes complexos industriais substituindo gradualmente as antigas pequenas industrias quase artesanais.

As escolas galgaram, ao desafio, bairros e povoações numa luta desenfreada de expandir o sabor e a instrução atingiu níveis que nem sequer nos era dado sonhar... Santo Deus, tantos e tantos jovens com curso superior! Goa bem pode vangloriar-se da sua juventude.

Entretanto, potentes escavadores continuam a desentranhar as encostas dos Gates num ciclópico trabalho de extração de riqueza que em camiões, em comboios e em barcaças é drenada nos bojos de enormes cargueiros ancorados no magnífico porto natural de Mormugão...

“Ninguém mais poderá deter o progresso deste terra” – como diriam os brasileiros. Coom Goa modificou-se.

Céleres, os dias foram passando. Num frenesi constante, numa verdadeira luta contra o relógio, andamos, vimos, sentimos, sondamos, palpamos, convivemos e agora que estamos quase a deixar o nosso torrão natal, apesar do estonteante e salutar progresso, apensar do imenso desenvolvimento, apesar, ainda, do calor, quase insuportável, continua a ser a mesma Goa que deixámos duas décadas atrás.

São iguais as lágrimas comovidas dos familiares que nos querem tocar repetidamente para terem a certeza de que não estão a sonhar e de que a nossa presença aqui é mesmo real.

São mesmos os abraços dos velhos amigos que quase nos partem as costelas de tanto nos apertar.

E mesmo o sotaque: carinhoso dos conhecidos que cruzam connosco nas ruas e nos saúdam amigavelmente: “boró assa”?

São iguais as várzeas infindas já loiras de sazonadas, algumas já em plena faina de ceifa e debulha, são iguais os cantares dos “rendeiros” lavrando as palmeiras são idênticos os murmúrios dos ribeiros e regato na sua corrida interminável para o mar, é idêntico o pipilar gorjeante dos pássaros orquestrando o alvorecer.

Não mudou o olhar vivo e nos rostos das criancinhas a caminho da escola, não mudaram os deliciosos sabores das iguarias tipicamente nossas, não mudou o ruminar pachorrento dos bois vagueando pelos arrozais já ceifados...

Não! Goa, apesar de tudo mantém-se idêntica a si mesma! Até o esguio e solitário coqueiro ao pé dos rochedos, à sombra do qual rimamos os nossos primeiros versos de ingénua adolescência, continua hirto e vigilante, talvez um nadinha mais velho, desafiando o firmamento com as suas palmas generosamente abertas...

Não há dúvida, Goa continua a ser a mesma “Golden Goa” de sempre, onde ainda se pode acariciar com a vista o frondoso das suas matas e o verdor das suas plantações, onde a hospitalidade e o carinho continuam a não ser uma palavra vã, onde a poluição ainda não chegou, onde ainda se pode respirar, como bálsamo salutar, a paz, o sossego, a tranquilidade que no resto do mundo já se perderam há muito tempo...

É adeus novamente.

Obrigado Goa por nós ter possibilitado redescobrir um dos últimos recantos onde ainda é permitido sonhar, onde a esperança renasce, onde a vida n~åo nos parece tão vazia e inútil.

Mais uma vez obrigada Goa... e até breve.

Monday 1 April 2013

Anonymous - Paisagem Tropical (1965)

Na noite escura e fria
Agoniza a Democracia...
Anda, anda,
Daia Nanda

De mansinho e de raspão,
Não vá despertar
A nova geração!

Anda, anda
Daia Nanda
Com cuidado, cuidadinho
Não vá tropeçar de caminho
Com o Zé povinho.

‘Tá uma noite escura e baça...
Daia Nanda foi a caça.
À primeira zagalotada
Atirou, logo, de pancada
Um javali... de raça.
Contudo, a gente de Vasco
Com muito asco,
Apregoa,
Em toda Goa,
Que Daia Nanda
Com os da sua Banda,
Só caçou... um leitão
Dexando em viuvez... uma leitoa.

Que horror!
Anda, anda
Daia Nanda,
Cautela e caldo de galinha.
Há um javali noutra banda,
À caça do Daia Nanda caçador.

Agostinho Fernandes - Tudo Voltará (1955)

…Ela morreu!... Morreu porque, coitada, lhe estalou o coração!

Mas terá morrido de facto? Teria deixado de existir? Sim! Aquele corpo de que ela ufanava de exibir as formas, já não existe! Desfez-se. Foi riscado o seu nome.

Para o diante, confundir-se-á com a terra, transformar-se-á nela, regressará à natureza de onde saíra para poucos dias.

Os seus órgãos despedaçar-se-ão em células, inúmeras células que perderão o poder de trabalhar, como unidades para uma unidade, destacar-se-ão egoisticamente, ganharão autonomia embora por pouco tempo e vir-se-ão libertas de escravidão do senhor – e todo – mas, por fim, degradar-se-ão também em compostos químicos cada vez mais simples até chegaram a elementos. O mesmo destino terá a brancura da roupa que lhe mascarou o corpo, as flores deliciosas que a acompanharam, as lágrimas que a molharam e o próprio palicete de pinho que lhe servira de lúgubre morada. Tudo se degradará, tudo se misturará entre si e com a terra, tudo o que foi votado à corrupção. Será uma massa anómala, idêntica a si mesma. Desaparecerão os antigos compostos químicos para se transformarem em neves, provenientes de mistura dos elementos daquelas diferentes unidades que a terra piedosamente recebeu no seu maternal seio.

Breve, tudo se dividirá em infinitas unidades químicas – os iões – que palatarão como bichos imundos presos a um corpo atirado à putrificação.

Terminações de raízes incautas obrigarão até lá. Absorverão sôfrega aquelas unidades de matéria e, a seiva fecunda correrá célere pelas veiazinhas da planta, ávida de distribuir pelos seus múltiplos órgãos aquele tóxico enverdecedor, vivificador!

Um botãozinho delgado, esquecido, banqueteará largamente naquela ceia fúnebre e daí uma flor policrómatica, viçosa, abrir-se-á impudica como uma mulher nua na cálamo nupcial.

Exalará aromas inebriantes... e as frescas brisas espalharão por toda a parte aquelas aromas fabricadas a partir de matérias pútridas... As abelhas não se demorarão em fecundar as flores sedentas de paixão, com o pólen fabricado enfim com a mesma matéria pútrida... E que deliciosas flores dali sairão?

E ninguém duvidará, ninguém pensará nisso. Deleitar-se-ão os olfactos com os magníficos aromas, galantear-se-ão as vistas com a harmonia das cores, muitos peitos se enfeitarão e se tornarão provocantes com aquelas flores, muitos paladares se saciarão com as frutas suculentas...?

Durará pouco! A natureza é pródiga e é avara ao mesmo tempo. Voltará tudo para ela. Os olfactos já não sentirão, as retinas não se admirarão, as flores murcharão e os frutos se transformar-se-ão em novas seivas e novos sangues.

Tudo voltará a natureza.. tudo, tudo o que de lá saiu. Não se perderá uma migalha, nem uma célula, nem um ião. Matematicamente tudo regressará a ela, para continuar a existir nela, eternamente. Nada se criará de novo, nem tão pouco se perderá, apenas se transformará largamente.

Sim. De facto. Embora se modifiquem integralmente os corpos e as suas formas, a natureza tem esse poder único: o de tornar imortal a sua matéria!

Laxmanrao Sardessai - Realidade (1966)

Só as ideias são reais
E a realidade é falsa
Inconstante e ilusória...
E as ideias que parecem ilusórias
São reais e, por isso, eternas.
Se a realidade são ideais,
Porque ela não é pura
Como as ideias de que dimana?
As ideias são a luz
E somos feitos de barro
E o conflito entre a luz e o barco
É universal e eterno
É uma luta medonha
Em que o santo e o filósofo procuram
Cristalizar na realidade as ideias
E tombam, um a um, nesta tarefa
Os espíritos divinos
Que teimam, quais loucos,
Em criar uma realidade
Nova e pura, transparente e bela,
Onde guarida não têm
Paixões e ambições.
Também, sim, como Cristo e Gandhi,
Mas cada tombar representa
Um passo para frente da Humanidade
Na senda da harmonia universal!

Agostinho Fernandes - Cortejo Fúnebre (1955)

O sino da igreja chorava lugubremente. À minha frente passava um cortejo, um cotejo fúnebre... Uma égua, velha e raquítica, com uma capa negra e desbotada, no costado, puxava languidamente o carro mortuário. De quando em quando as suas narinas dilatavam-se, e o olhar brilhava cínico com que dissesse: “uma besta viva a carregar uma besta morta!...”

Quem iria no féretro? Um velhote, diabético, vergado sob o peso da maldade? Qualquer jovem roubado à vida desvairada? Alguma mulherzinha subtraída às dores do parto...?

Atrás seguia gente: parentes e amigos, admiradores e indiferentes... Todos, num pouco à vontade, pareciam condenados... Alguns derramavam lágrimas hipócritas... Outros pareciam fulminados pela dor que não sentiam. Ainda havia alguns, talvez os mais sinceros, os mais honestos, que se entretinham a conversar.

Sem querer, sem mesmo pensar nisso, meti-me no cortejo, fui seguindo a égua cínica... O sino continuava chorando, continuava derramando lágrimas.. Como nada tinha a fazer pus-me a ouvir os comentários: “Coitadinha, estava para se casar...” “Tinha apenas vinte anos, mas que jóia de rapariga!...” “... Moça a valer, lá isso era! Que formas!...” “... Foi o coração que se estalou. E de namorar muito!” Não pude conter uma gargalhada! Que comentos! E a égua a ouvir tudo isto e a julgar...

Mas afinal porque seguia eu o cortejo? Com que fim? Nem sequer conhecia o ilustre cadáver...! Se ao menos aquilo divertisse...!

Passava-se por um restaurante. Raspei-me, meti-me por aí dentro e enquanto o café fumegava na chávena, o meu pensamento acompanhou o cortejo e voou até a casa dos mortos: lá estava ela, rapariga de 20, moça a valer e a quem o coração estalara! E o coração estalara exactamente quando se ia casar! As suas vestias imaculadas, vestias de virgem salientavam-se na escuridão da cova fria, cova de primeira classe! Vestiam-na de virgem para ser hipócrita mesmo depois de morta: davam-na um poisio de primeira classe para continuar a ser “classista”! Mas lá estava ela... O seu rosto não me parecia desconhecido. Talvez já a tivesse visto, talvez a tivesse visto muitas vezes! Sabe-se lá?... Talvez ao passar por mim, toda perfumada, toda orgulhosa das suas formas a tivesse desejado secretamente... Talvez já a tivesse despido muitas vezes com o olhar! Poderia perguntar quem era ela. Mas, para quê? Que me interessava isso? Ela estava lá. Um montão de células podres!... Aquele coração que estalara já não bateria mais! O sangue estagnar-se-ia nas veias, o cérebro deixaria de pensar, os músculos não se moveriam, os nervos não conduziriam e o seio não arfaria outra vez! Ninguém mais a desejava, ninguém mais se importará com ela, pertencerá ao passado e, daqui a dias eu próprio me esquecerei dela e do cortejo fúnebre...

Ave Cleto Afonso - O Testamento de Um Moribundo (1966)

Pankash estava profundamente intrigado. Por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia descortinar a razão dessa sentença que tinha de cumprir.

“Não, assim é que não irei. Quero ver o Raju antes de partir. Quero dar-lhe este pião, aquela bola e mais o arco. É tudo quanto tenho de meu”, resolvera, agachado por detrás da sebe, olhando atentamente em direcção da sua casa. Esperava que o seu tio Tucaram se fosse embora. Assim poderia retardar a sua saída da aldeia onde passara toda a sua vida, cheia de recordações.

Pankash tinha os seus doze anos, já completos. Frequentava a escola da localidade e era o mais irrequieto da companhia. Entre todos outros da sua roda, era talvez o mais estimado e impunha-se logo como chefe indisputado. Os adultos, estes é que não o compreendessem bem. Se tentasse adoptar maneiras de pessoas já de idade, censuravam-no, riam-se dele, expunham-no ao ridículo. Se quisesse portar-se como um menino despreocupado, então repreendiam-no também, exortavam-no a ser mais sensato, queriam que seguisse o exemplo dos velhos. Era um dilema que era incapaz de vencer só por si.

Agora tinha mais um problema a enfrentar: o seu irmão Raju, de oito anos de idade. Sempre que ele fosse jogar ao pião, lá vinha ele arrancá-lo das suas mãos. Mal tocasse na bola, o Raju pedia o esférico. Se fosse jogar com os seus amigos da vizinhança, o pequeno déspota do seu irmão lá chegava também, e punha-se no meio. Em mais de uma ocasião, tivera de fazer de juiz e carrasco, impondo e executando penas contra o impostorzinho: uns murros aplicados à socapa, uns empurrões e outros correctivos desse género.

Mas, invariavelmente Pankash fora, por sua vez, castigado pela sua mãe. Mais novo como era, Raju estava nas boas graças de todos os adultos de casa. Os seus olhos, deitando lágrimas de teimosia infantil, nunca haviam deixado de comover Vijaybhai, a mãe dos petizes. Em resultado, o mais velho merecera muitas vezes penas corporais várias.

Desta vez, porém, o castigo consistia simplesmente numa deportação. Pankash teria de acompanhar o seu tio Tucaram para a terra deste e ficar lá isolado por quanto tempo não se sabia. Frequentaria a escola nessa nova paragem, criaria novos amigos, adquirira novos gostos. Já não teria mais a companhia de Raju, a quem, aliás, muito queria. Os seus bosques e campos favoritos, amigos queridos e tudo o resto ficaria muito longe, por muito tempo, talvez para sempre.

“É verdade que atirei o Raju ao chão, mas só por isso terei de abalar para tão longe? E porque é que não querem saber daquilo que ele fez a mim? Não me deixava livre o baloiço e avisei-o, três vezes, a sair”.

Contudo, estava decidido a não acompanhar o velho Tucaram sem fazer o testamento. Queria dizer que amava muito o seu irmãozinho e fazer dele o herdeiro dos seus bens: um pião de madeira, uma bola de lona, um arco de metal. Custava-lhe muito este exílio e observava, do seu esconderijo, o velho casarão como se tivesse sido ausente por algumas décadas de anos. Já sentida saudades da figura turbulenta de Raju, como se tivesse regressado depois de um longo desterro.

Era tarde demais para continuar nessa posição. O sol já encarregara a Lua de tomar conta do seu reino dentro de uns momentos mais. O irmão de Vijaybhai decidira pernoitar em casa do cunhado Venctesh, ausente na cidade.

Como um condenado expiando o crime, Pankash transpôs o umbral da quinta. Queria pedir desculpas à mãe, mas um semblante indiferente e ameaçador manteve-o à distância. Esperou que o tio fosse mais afectuoso, mas ouviu sair da sua boca de educador rigoroso: “Saberei curá-lo”. Buscou Raju com o olhar e viu-o a um canto, saboreando guloseimas e insistindo em não levantar os olhos para ele.

Quando estendeu o corpo pesado na enxerga, sentiu uma ligeira dor na cabeça e um calafrio sacudiu, ao de leve, o seu ser. Antes de ser vencido por um pesado sono, ouviu confirmada a cruel sentença. :Bahu, por Deus, leve-o consigo. Talvez consiga corrigi-lo. Estou cansada das suas diabruras” – dissera Vijaybhai ao seu mano.

*

“Não... não... não me batam. Irei com ele... Tuca’m bab vamos agora mesmo... Eu vou consigo... Não quero mal a Raju...” Era noite alta quando Pankash pôs-se a gritar em sonhos. Acordou sobresaltado e viu que todos de casa tinham acordade aos seus gritos. Pela fenda da janela soube que havia luar lá fora. Que horas seriam? Desejaria que fosse já dia e pudesse ir-se embora com o tio.

Mas Raju... Ao menos queira vê-lo. Queria que ele dissesse que faria uso do seu pião, da sua bola e do arco. Sentiu então que tinha a testa e o corpo orvalhado de suor. Tentou dormir de novo.

“Levem-me ao Raju... Levem-me ao Raju... Quero ver Raju...”. Tentou levantar-se mas viu que não podia. Estava com febre e sentia como que uma fornalha ao redor. Vijaybhai comovida aconselhou-o a dormir sossegadamente. Queria que o filho ficasse bom na manhã seguinte e não mais exigiria o cumprimento do castigo de separação. “Pankash e Raju não mais brigarão. Pankash há-de ser bom rapaz e há-de ficar connosco” idse a mãe, acariciando a testa e a cabeleira do filho enfermo.

“Mãe, quando Raju acordar amanhã, diga-lhe que gosto dele. Aquele pião... o meu pião...”. Trouxeram-lhe então de um canto o brinquedo que Pankash tomou nas suas mãos febris e trémulas exclamando: “É para Raju. Raju gosta dele...”

Havia um nervosismo no semblante de todos ao redor. Pankash estava seriamente mal e não havia médico algum na aldeia que pudesse acudir mas o jovem parecia indiferente a tudo aquilo. Só lhe interessava que Raju aceitasse a sua oferta de pião, bola e arco. Para ele, o irmão mais novo, que entretanto já se encontrava ao pé do doente, tornara-se a única preocupação. Os dois haviam brigado sempre mas já não brigariam mais.

“Eu gosto de Raju e quero dar-lhe o meu pião”, era o último juramento de Prakash.

Laxmanrao Sardessai - Inspiração (1966)

Não sei onde estás!
Mas sempre estás no meu coração
Porque abriste-me
A torneira da inspiração
E desapareceste como um passarinho
Que pousa numa pedra
Canta... canta...
E ao encontro da sua canção
Sai da terra um fio da água
Marulhando...!

Alberto Cota - Epistolas II "De Caminho..." (1983)

Manhã do dia 24 de Abril de 191... Surgia rútilo por entre a neblina o astro do dia devolvendo alegria à natureza; alegria para os campos acidentados aqui e ali por verdes comas de donairosos coqueiros doirados pelos raios matutinos; alegria para as aves saltitantes de ramo em ramo sacudindo das suas penugens multicores camarinhas de água que o chuvisco nocturno ali depositou; alegria para os camponeses que na sua ocupação cotidiana curzavam-se nos campos uns de arado às costas, outros de cestos nas cabeças levando para terra a sementeira para que ela os devolvesse em cêntuplo.

Um quilometro alem após um distiladeiro marcando o limite das planuras o quadro era diverso: picos longínquos, moitas compactas, veredas sinuosas encombradas de verdura, rampas sulcando vertentes, abismos cavando profundidades, tudo contrastando tudo embelezando numa desordem encantadora e sob a cúpula celeste pura e transparente que o génio humano não lograra imitar.

Por uma estrada que se penetrava em ziguezagues por entre vertentes exuberantes de vegetação silvestre caminhava um viandante, mancebo de vinte e seis anos, medindo com a vista o caminho a percorrer e que lhe afigurava imenso. Grossas bagas de suores escorriam-lhe pela fronte em que transpareciam sinais indeléveis de sofrimento. O próprio olhar deixava adivinhar o obscuro do seu passado se não o presente. Regular de estatura, tez morena, simpático no seu conjunto, correcto no porte tinha qualidades de atrair o mais indolente.

Cem passos mais e casou-se com um outro que vinha em sentido contrario. Era Francisco da Costa, o robusto oficial do exercito em serviço na povoação de X... Vestido de caki espingarda de dois canos ao tiracolo, cartucheira bem provida cingindo a cintura, uma cabeça bamboleante ao menos movimento do possuidor e botas altas davam-lhe aparência de homens de guerra em plena campanha.

Júlio Lopes, tal era o nome do mancebo, na incerteza do caminho que percorria e era a primeira vez que chegava aquelas paragens perguntou-o parando para ele:

“Faz-me obsequio... é este o caminho que dirige para povoação de X... e resta muito para lá chegar?”

“É estrada de que se trata, é ir direitinho sem mudar pela outra que surge a esquerda, disse Francisco quanto ao mais caminhar resta-lhe um bom pedaço.”

“Obrigado.”

Cada qual seguiu o seu caminho, Júlio apressando o passo para chegar cedo a repartição onde ia apresentar-se munido de guia de transferência; Francisco desviando-se da estrada para meter-se no denso arvoredo a cata de caça.

Por fim desapareceram-se os dois, um atrás das moitas, outro na curva do caminho.

Súbito alem onde o céu parecia tocar-se com a terra formou-se uma nuvem plumbia que de pronto tomou proporções de gigante. Dilatou-se enroscou-se nos seus tentáculos de polvo, já ganhou o Zenith numa aceleração espantosa. Escondeu o astro diurno o seu disco de fogo atrás das massas disformes que já toldavam o espaço ameaçando arrazar derrubar tudo. Desprenderam-se os ventos em uivos de hiena, cruzaram-se fagulhas eléctricas em ziguezagues, caíram fendidas de alto abaixo árvores seculares em crepitações, reboaram baques nas fragoas e bramiu medonho o trovão vitorioso. E grossas gotas de chuva sulcaram a atmosfera carregada de ozone e escorreu água barrenta pelos sulcos escancarados enquanto o vendaval recrudesceu açulando os elementos para refraga feroz. Por fim como por encanto amainou-se a tempestade, romperam-se as nuvens, jorros de luz rasgaram o espaço e do lado oposto do sol surgiu benfazeja a arca de aliança nas suas sete primarias cores. O vento agora brando remexeu-se na folhagem; e cada ramagem era um feixe de jóias incrustadas de pérolas e cada casinhola distante um ninho e o murmúrio das águas o cochichar dum casal.

O nosso viandante emancipado já do susto prosseguiu o seu caminho.

Longe nas quebradas das serranias ouviu-se um tiro, depois um outro.

“Talvez o seja daquele caçador” pensou Júlio.

Por fim, já depois de sete curvas dobradas e sete eminências transpostas divisou não muito longe à sombra de coqueiros enormes traves de ferro cruzadas em mil setios qual gigantesco conjunto esquelético dalgum monstro geológico. Era ponte em construção que comunicaria a estrada com a povoação de X...

Sustentam-na oito colossais pilares que trabalho insano custou aos construtores. Três vezes ergueram-nos para três se desmoronaram pelo ímpeto das torrentes; nem isso valera! Estavam empenhados os engenheiros naquela obra que as águas reduziam a escombros. Tanto trabalho frustrado, tantas noites perdidas à espera da vazante do rio porque só nelas possível era trabalhar nos alicerces. Somente pela quarta vez é que a obra ficara de pé. E desde então ergueram-se erectas na sua rigidez de aço, gigantes no tamanho, enormes na espessura sustentando possantes nas suas cabeças elípticas o peso daquelas massas de ferro por onde para o futuro passariam os veículos sem nenhum receio de soçobro. Júlio a medida que avançava devorava com a vista aquela obra gigante, fruto de tanto labor.

Já de passo estugado chegou a margem do rio. Na oposta serralheiros em grupos, uns ocupados em limpar da ferrugem peças de ferro, outros em solda-las, dava não sei que de encantador aquele quadro pitoresco.

Mas um barulho ensurdecedor saía daqueles grupos que as olas de coqueiros sombreavam.

Distante, atiçava-se a fornalha nas forjas onde o ferro incandescente faiscava rutilo sob o peso do potente martelo que o maleiava e recurvava ou endireitava segundo requeria o engenho enquanto os foles sibilavam inchando e contraindo os seus bojos descomunais para inda mais abraçar a fornalha crepitante onde peças de ferro esperavam a sua X.

Quatro braças além onde a ramagem era mais densa avistou Júlio um individuo sentado no tronco duma árvore decepada, ocupando em falar sobre o assunto da obra com mais dois que escutavam de pé. Cans venerandas coroavam-lhe a fronte rígida e serena. Os fartos bigodes recurvados nas pontas, o nariz de uma correcção atlética, o contorno dos beiços a exteriorizar fraqueza rude, os maxilares musculosos, davam ao seu rosto crestado pelo sol ardente da Índia, um tom próprio de quem passasse por trabalhos árduos.

O seu vestuário era duma simplicidade provinciana: camisa ampla desabotoada até ao meio do peito peludo, calças curtas, sandálias de coiro grosso. Tinha uma carabina ao lado é um cachimbo espetado ao canto da boca. Teria sessenta anos de idade.

O nosso mancebo reconhecendo nele seu velho tio, acenou ao ar seu lenço. E, atravessando, quase a correr, a ponte provisória erguida nas estacas foi lançar-se nos braços do velho que o apertou saudoso.

Notas Biográfica de Adeodato Barreto

Júlio Francisco António Adeodato Barreto nasceu a 3-12-1905 em Margão, em casa dos seus avós maternos. Filho de Vicente Mariano Barreto, de Loutulim, e de D. Verediana Colaço e Barreto.

Após estudos secundários no Liceu Municipal de Margão, partiu, em 1923, para Coimbra, em cuja Universidade se formou em Direito e em Letras (História e Filosofia). Na cidade douta contribuiu para a organização de um Instituto Indiano e para a fundação de um jornal que durou pouco: Índia Nova. Foi em relação com estas actividades que esteve em contacto com os mais celebrados escritores indianos e orientalistas de renome, como Rabindranath Tagore, Silvain Levi, Romain Rolland etc.

Compôs os seus primeiros versos quando tinha doze anos de idade.

Feito o exame de Estado em 1931, após ter tirado o curso da Escola Normal Superior, foi professor de uma Escola Industrial na Figueira da Foz, optando logo pela carreira burocrática. Em 1932 foi nomeado Escrivão de Direito em Montemor-o-Novo e, passados poucos meses, mediante concurso, notário em Aljustrel, onde, após quatro anos, foi atacado por uma moléstia incurável que lhe cortou a existência em 6-8-1937.

Alfredo Dias - Apreciação Crítica de Adeodato Barreto (1966)

Adeodato Barreto foi um dos raros intelectuais da nossa terra que soube pautar a sua vida, conjugando os altos ideais que acalentou na alma, com acção positiva e persistente, embora à custa de sacrifícios sem conto. A sua prodigiosa actividade, quer no campo literário quer no campo social, que começou a desenvolver desde tenros anos, teve duração efémera. A morte cedo o arrebatou à vida a que com tanto entusiasmo de alma de agarrara. Mas a obra universalista e bem humanitária a que devotou a curta existência, basta para que o seu nome seja consagrado e inscrito, em letras de oiro, no panteão dos filhos mais preclaros da nossa terra.

Afigura-se-me tarefa impossível esquadrinhar a sua obra multifacetada adentro do tempo restrito que me foi marcado. E, mau grado, meu, fico obrigado a limitar o âmbito desta palestra apenas as características dominantes da sua obra.

Para tentar um ensaio critico da obra que Adeodato Barreto nos legou importa, antes de mais marcar, o seu âmbito quanto ao sentido humano e aos ideais que a informaram. Vejamos, em primeiro lugar, quais os sentimentos que inspiraram e orientaram a sua obra poética.

*

Acima de tudo, vemos através das enternecedoras páginas dos seus versos, perpassar a chama ardente da espiritualidade indiana, retratada num objectivismo tão comovente que bem se pode afirmar que Adeodato Barreto é um poeta indiano por excelência. Os seus voos líricos em prol da reivindicação espiritual da terra natal, pode-se bem afirmar, constituíram a preocupação dominante do seu espírito.

Vemos igualmente palpitar, na sua obra, um cântico de saudade vibrando de paixão pela grande Índia e por esta negada terra natal, cujas belezas são visionadas em êxtase pela alma sonhadora do poeta.

Ressaltam igualmente na sua obra, nitidamente, duas ideias fundamentais afirmando a beleza da sua crença, embora exaltada mas consciente, que leva o poeta às profundas e emaranhadas regiões do pensamento, perscrutando a vida universal, nomeadamente o panteísmo e a metempsicose (ou seja, a alma universal com elevação mais perfeita de tudo e a solidariedade de todos os seres da natureza).

Haurindo, nos princípios e doutrinas emancipadoras e igualitárias de Buda, a religião sublime da verdade e da não-violência que constituem a base da tolerância universal, sobre a qual se deveria assentar a nova forma de humanismo, tendente à comunhão dos povos; partidário de harmonias e defensor consciencioso dos sagrados e importais princípios e direitos da humanidade. Adeodato não foi apenas um defensor acérrimo do direito da emancipação da Índia. Foi muito além. Em algumas das suas composições poéticas, através de imagens fantasistas do poeta Adeodato, na fé ardente mas cândida de um sonhador impenitente, vaticinava a missão futura, reservada à Índia na pacificação do mundo conturbado dos nossos dias, e quiçá na condução dos destinos da humanidade.

Para não me alongar muito, cito apenas a parte final da sua poesia “Apoteose”, um hino de louvor e de exaltação da terra querida que lhe deu o berço. Eis a chave de oiro com que o poeta fecha o seu cântico:

Essa árvore, ó terra amada

Não é sonho!

Não é apenas miragem fugitiva

É a viva perspectiva do teu futuro risonho

(Na indecisão duma imagem de poesia,

Quantas vezes a verdade

Se anuncia!

Mas apenas a desfruta

Quem sabe reconhecer

Os seus fulgores dispersos.

Terra saudade,

Terra de beleza!

São luz e cor os meus versos)

Simplesmente;

Mas goza,

Procura compreender

O que há neles de profundo...

E se és actualmente

No Oriente

Uma princesa desditosa

Serás então com certeza

Uma Rainha, no Mundo.

Disse eu que Adeodato amava entranhadamente a sua terra natal; mas, ao dizer isto, não se deve inferir que o amor do poeta se limitasse apenas a isso. Não . O amor de um poeta, encarnando o ideal da perfeição humana, não podia ter um sentido tão restrito.

Esse amor pelos homens e coisas que fez de Adeodato um homem superior, era mais amplo e abrangia o Universo. À maneira dos rishis indianos, que embrenhando-se nos lugares ermos, tentavam resolver os problemas supremos da Vida, Adeodato foi bem um asceta que, recolhido dentro de si próprio, se interrogava sobre a razão de ser da dor humana. A limitação dos das possibilidades do auxílio ao próximo diante da imensa tragédia dos que sofrem, jamais fez diminuir em Adeodato o entusiasmo pela luta que travou sempre na esperança pela vitória decisiva pela qual se alcançasse o melhoramento do seu Homem. Esse Homem era para ele uma criação de espírito, que ajudou, de algum modo, a erguer com as forças de que dispunha.

Era bem grande a alma do poeta – tão grande que, alem da sua Índia, cabia nela o Mundo todo. É que ele estava compenetrado de que a sua acção, sobranceira aos limites dos estreitos de uma pátria, tinha um conteúdo e significação universais. Não fosse o seu pensamento tão amplo, as comunicações da sua alma excelsa não teriam tocado a alma dos ocidentais que viram bem nesse defensor do direito das gentes mais um apóstolo a enfileirar-se ao lado dos Grandes que pertencem à história do Mundo pela projecção da sua obra fecunda. Efectivamente Adeodato foi o homem universal, no sentido em que a definição serve para classificar o valor humano, cuja obra atravessa as fronteiras da sua pátria e começa a pertencer ao Mundo do Espírito. Essas virtudes que constituem a síntese psicológica do seu carácter, deram ao poeta o traço psicólogico de valor universalista. Por outro lado, o seu lirismo, ritmando as vibrações elegíacas da sua sensibilidade que, por vezes, chega a parecer sentimentalidade mórbida, deixou-se impressionar pela tragédia da dor humilde. Parecia o coração do poeta abrir-se para dar refúgio a todas as desgraças do Mundo.

Não havia dor que o não fizesse sofrer nem lágrimas que o não fizessem chorar. Haja vista uma sua passagem que vou citar da sua poesia “Confidências” a revelar a delicadeza do seu sentimento, uma sensibilidade quase mórbida perante a dor humana. Eis o texto:

É certamente uma alma bem pequena,

Esta minha...

Ontem, vendo à janela uma avezinha,

Quase morta de frio,

Até me senti doente,

Aquela criancinha,

Descalça e que, de fome,

Pouco fala,

Não passa que eu não chore

Ao contemplá-la

Não sou capaz, não posso,

Por mais que queira,

Pousar o pé sorrindo, indiferente,

Sobre um verme que arrasta tristemente

Seu mísero fadário na poeira...

Por vezes tenho pena

De ter assim uma alma tão pequena.

Se possuira uma outra, grande e forte,

Não me faltaria nada.

Mas que seria de ti

Ó criancinha nua que eu vesti?

Mas que importa

Que me importa ter a alma pequenina se cabe

Nela a dor dum mundo inteiro?

Mas Adeodato Barreto, como frisei já logo ao princípio, não se limitou a teorizar os seus princípios humanitários. Ele soube conjugar sempre os seus ideais com acção positiva e persistente em prol da humanidade. Seduzido pela beleza das doutrinas sociais, com esse estoicismo e abnegação que o impunham à consideração ainda dos próprios adversários, Adeodato soube como raros harmonizar os actos com as palavras. A sua bondade, o seu altruísmo granjearam-lhe, por toda a parte, carinhosas e abnegadas dedicações. Um exemplo apenas que aqui cito, basta para definir esta faceta humanitária da sua personalidade. Em Aljustrel onde Adeodato Barreto exercia a função de notário, havia um núcleo importante de mineiros, homens rudes, endurecidos pela lida penosa da dura profissão.

A Adeodato não lhe sofria o ânimo que esses infelizes, explorados pelo egoísmo humano, continuassem a arrastar essa vida inglória, sem ao menos lhes suavizar a alma com a assistência moral ao seu alcance. Abriu para eles uma escola onde, nos momentos de lazer, lhes ministrava ensino gratuito. Nesta escola, não só lhes ensinava ler e escrever mas ministrava-lhes pari passu educação moral sã, exercendo neles a influência benéfica dos seus sentimentos, essa doçura espontânea do seu coração amorável, criando assim em sua volta uma verdadeira auréola de santo.

E não se fez tardar o fruto desta sua fecunda acção educativa. Teve a recompensa consoladora de avaliar uma tocante manifestação de apreço pelas suas muitas virtudes de espírito e de coração. Estes seus discípulos, homens boçais, sabendo que o Mestre caíra doente, faltando-lhe meios de subsistência, levaram-lhe as migalhas colhidas com os maiores sacrifícios para lhe minorar, de algum mo (segue na 4a pagina)do, os sofrimentos dos mestre e amigo. Mais do que ler e escrever, os discípulos destas lições aprenderam a conhecer as virtudes do homem bom. O carinhoso semeador do bem verificava os efeitos do seu desinteressado mas belo trabalho de modelador de almas.

Mas não foi só nesta escola que ele revelou as suas qualidades inatas de pedagogo. |AA sua fecunda acção educativa desentranhou-se através de várias instituições e jornais que fundou ou dirigiu com o móbil de propagar ideais de pronunciado sentido educativo. Pode-se mesmo afirmar que toda a sua actividade literária ou social teve uma finalidade nitidamente educativa. Em toda a sua obra ele deixou o vinco da sua acção pedagógica.

Diz-se que o ideal pedagógico, a símile do ideal poético, manifesta-se como anseio da perfeição humana, ora desentranhando-se em fórmulas educativas no mundo de realidades tangíveis, ora manifestando-se em ritmos sonoros a evolar-se nas regiões etéreas da ideia pura. E não é raro notarem-se afinidades estreitas entre estas duas manifestações da alma humana. E pode-se dizer que esta afinidade admirável entre o ideal pedagógico e o ideal poético realizou-se em Adeodato Barreto, fazendo dele um poeta pedagogo – um educador por excelência, inspirado pelo génio da poesia.

Bibliografia de Adeodato Barreto

Verbo Austero (1930)
Civilização Hindu (Separata da Revista Seara Nova)
Democracia Orgânica (1931)
Sobre o Presente e o Futuro de Goa (1930)
Ideias Pedagógicas de Tagore
Poetas Luso-Indianos (1929)
Mahatma Gandhi (trad. da obra de Romain Rolland 1925)
Ensaios – Coletânea de Estudos sobre temas vários
Temas Educativos
Na Tribuna (Colectânea de discursos e conferências)
Erguendo a Luva (Colecção de Artigos em Defesa da Índia e dos Indianos)
O Livro da Via – Coletânea de Poesias (1935)

Alberto de Menezes Rodrigues - Um Vulto Caminha Pelo Valado (1964)

Cavos e profundos são os rugidos do Zuari
Porque está no auge a monção
Alta hora da noite
Ansiando lenitivo
A dor que me atormenta com rudeza,
Abro a janela
E espraia a vista pela Natureza.
Que tétrica escuridão!
Nuvens pluviosas toldam o céu
Lugubremente.
O vento brama,
Fustigando com furor demente
Os coqueiros,
Que parecem enormes gigantes descorçoados,
E cujas frondes são grandes cabeleiras negras
Alongadas para o nordeste,
De quando em quando vibram no ar
Latidos de um cão
Impressionado com a violência
Da ventania.

.

Um vulto caminha pelo valado
Que conduz à estrada asfaltada.
Homem ou mulher?
Avança o passo acelerado
Por entre espiques de palmeiras
Pisando talvez plantas rasteiras.
Nesta hora de negridão
E de pavor
Que plano domina o cérebro
Daquela criatura audaciosa
E vai ter execução?
Roubo?
Suicídio
Aventura amorosa?