Thursday 31 January 2013

Visnum Porobo Sincró - O Remanso (1972)

Mourejando pelo mundo sem destino,
Esfalfado voltei para o meu lar;
Achei-o mui desfigurado, em ruínas...
Tu estavas ainda à minha espera, já alquebrada;
Deus existe!!! Porque deixou-te sã ainda.
Juro que nunca te deixarei sozinha.
Pois em tua companhia amiga medrarei viçoso
Tenho fé n’Ele; é assim que redimirei
Todos os erros meus e faltas praticadas,
Que desejo reaver a confiança tua,
Sinto imenso ter-te feito padecer,
Por tão longos anos; sempre fitos os olhos
Esperançados de que eu havia de voltar!
Para passar o resto da vida no remanso.

Wednesday 30 January 2013

AC dos Santos Pereira - A Minha Homenagem à Inesquecível Memória do… (1965)

Patriota ardente e fervoroso
Escritor cintilante e primoroso
Deu o melhor aos Serviços da Agricultura
Raiou aos 29 de Junho de 1892 em Benaulim,
Obreiro social e infatigável, à altura.

Com pena, na mão, bem aparada,
Olhou aos altos desígnios da Terra amada,
Reagia com brilho a tudo o que era contra,
Retorquiu com argumentos sólidos a favor da nossa cultura.
Estrénuo paladino dos direitos postergados,
Indomável coragem era sua faceta,
Atento sempre, em defesa da Pátria ditosa.

Amigo sincero, leal e dedicado
Foram os predicados que o tornaram querido,
Observou de perto as virtudes excelsas
Nas pessoas que lhe eram caras,
Soube transformar em Altar de Amor
O seu leito de martírio, de sofrimento e de dor!!!

Maria Flávia Xavier - Recordando (1966)

Meu lenço todo branco, de cambraia,
Comprado, um dia, aos vendilhões da feira!
Lindo presente que a minha pobre aia
M’ofereceu ,p’los anos, prazenteira;

Como crianças que são da minha laia,
Fui de mil precipícios caminheira;
E aquela mulher, sempre de atalaia,
Amparou-me, só eu sei, de que maneira!

Dia dos mortos! Sinto, na minha alma, o tédio
De a não ver, a nostalgia sem remédio,
Duma dedicação, como não há igual;

E evocando aquele tempo tão remoto,
Trago, ainda nas mãos, o lenço já roto,
Ao desfolhar rosas no seu coval!

Mariano Gracias - O Saugate (re-printed 1966)

Filsu-bay, com seu tcholi de cambraia,
O seu saddi de rubro gorgorão,
Trouxe-me hoje um saugate de papaia,
E alvá, numa boceta de xarão.

Filsu-bay é uma formosa aia,
Da minha linda vila de Margão;
Desde Birmânia ao Gôlpho de Cambaya
Não há outra tão linda no Hyndustão!

Com que graça lhe enfeitam o fompó
Perfumados onvlã e kovasó,
E como ardem seus olhos em desejos...

Filsu-bay, ó minha Filsu, vê lá:
Prefiro o teu amor ao doce alvá,
E à gostosa papaia, abraços, beijos!..

(From Terra de Rajáhs)

Tuesday 29 January 2013

Maria da Luz - Absolto (1956)

Num fim de Maio embarcou com destino à vida. Estava mar e viajar no convés foi coisa horrível. Jurou nunca mais fazê-lo. Era preciso, mas é, arranjar dinheiro para as passagens do camarote da primeira. Ali sim! Viajava-se bem, e o contraste entre as condições do convés e o luxo das cabines era demasiado abismante, para não excitar o sadismo que todo o homem possui.

Depois... tinha em casa uma mulher que era um mimo. E o filhinho recém-nascido! Porque não seria ele um reizinho, fazendo tudo quanto fazem os filhos de gente de bem?!

A manhã raiava fresca, mas sem encantos. Os encantos deixara-os todos no cais da sua terra, quando retraído e humilde, como são os do seu sangue, acenou à mulher e ao filho com o seu lenço, amarelo de tanto tempo que esteve sem uso, na “área” da sua casa. Não era o único a partir, embora de todos os mais moiro. Um irmão do batcará, rico e, ao que dizia, muito parecido com ele – a maledicência popular atribuía a esse senhor de gente de bem, a paternidade do nosso José – seria o seu futuro patrão. Ia para criado de mesa da sua casa.

O porto estava à vista. Um pouco de água suja, adocicada – chamavam a isso chá – num púcaro muito velho de alumínio e uma fatia de pão torrado, foi o seu pequeno almoço. Bebeu e comeu num instante e apertou o seu saco de viagem. Ao longe, via uma agitação que nunca vira: eléctricos, guindastes, autobus de dois andares. Mas tudo isso de nada servia: a mulher ficara em casa, grávida, à espera de novo filho, e a cuidar do outro que já tinha. Sentiu uma lágrima húmida na sua face encovada de fome. Sacudiu-a, importuna que era. A lágrima secou. O seu menino, porém, não mais lhe saiu de olhos. “Que bonito que era, e quanto eram parecidos, pai e filho”. Embocou-se e acarinhou o seu saco de viagem. O regresso não tardaria...

Já na alfândega, fizeram-lhe desarrumar o saco; mexeram-lhe em tudo e perguntaram-lhe se trazia contrabando. Borgaço, e boçal, recém-vindo da sua aldeia e atirado de chofre contra uma cidade endemoinhada, abriu muito os olhos para compreender tão misteriosa pergunta. Gaguejou um não, que lhe mereceu o sumário “suspeito”, dita seca e ciosamente pelo alfandegário. Também, não compreendeu o que dele acabavam de julgar. Sentiu o perigo só quando um guarda, pegou-lhe pela gola do casaco e arrastou-o à cela.

- Não toque no meu casaco – bradara de raiva, ao ver tão mal tratado o seu melhor “coat”.

A ninguém comoveu o seu lamento. Riram-se do “suspeito” e meterem-no na cela. Que triste surpresa! Porque o prendiam – ninguém o dizia. Nem lhe esclareciam o que seria feito da mulher e do filho que deixara na terra! Chorou de cor, amargura, incerteza e inconformismo! Arguiu o seu caso, para ele com lógica, para os outros, estupidamente. Prontificara-se a jurar pela sua inocência, pondo a mão no crucifixo. Mas não lhe aceitaremos semelhante prova de honestidade.

- Que homens, que nem no juramento acreditam? – chorou deseperado.

Aos poucos, foi-se habituando à vida da cela. Já lhe tinham revistado tudo, mas nada lhe apanharam. Depois mandaram-no despir, e quanto o ofendeu esta ordem! Foi em vão que quis ser pudibundo! Queriam-lhe ver tudo, mas tudo. Nunca sofrera semelhante vexame. Até o médico da sua aldeia, era mais compreensivo. Após o exame convenceram-se de que nada trazia.

- Mas o que posso trazer – perguntava o José – se venho aqui para levar dinheiro para a minha mulher e os meus filhos (o que tenho e o que há de nascer)?

Conservaram-no mais uns dias na cela, a pretexto de lhe extraírem confissões a respeito de “outros” contrabandistas. Mas quais “outros”? Se ele nem sequer as conhecia?

Por fim, fizeram-no comparecer num tribunal e mandaram-no em paz! Que alegria! Ia escrever à mulher, ou melhor, ia à casa do seu patrão, pedir-lhe que lhe fizesse o favor de escrever à sua mulher.

Andou à roda da cidade três dias, sem saber onde o patrão morava. Perdera a direcção, mas lembrava-se bem da descrição que lhe haviam feito do patrão. Perguntou a mil e uma pessoas, e a todos deu as indicações que sabia! Uns não lhe compreendiam a língua! Outros riram da sua ingenuidade. Até que por fim, mais por acaso do que por qualquer outra circunstância, viu o patrão, em pessoa, numa via pública. Correu para ele, e pô-lo ao corrente do que se passara.

O patrão fixou muito a sua cara, e disse, sem mais somentos:

“Julguei que já não vinha. Faz dezoito dias que contratei outro criado”

“Mas então, o que será da minha mulher e dos meus filhos (o que tenho e o que há-de nascer)?”

Não obteve resposta. Passou a mão pela cara. Tão desesperado, que nem lágrimas tinha. Sentou-se no passeio para não cair. Sem vintém no bolso; o que tinha, gastara nos três dias que andou à procura do patrão! O passeio era mais porco do que o convés do barão: papeis de todas as cores, nódoas vermelhas de betel em todo o lado! Encostou-se a um poste... dormiu e sonhou: que alívio para a fadiga! Estava rico e regressava à terra, no camarote da primeira. A mulher esperava-o no porto, com dois miúdos crescidos. Que bonitos que eram, e quanto se pareciam com ele. Agora estava rico. Era homem. Já não precisava de falar com a mulher humilde e retraidamente. Era “gente” como qualquer outro ricaço. Havia de beijá-la, como os ricos beijam quando se cumprimentam... Reparou que a mulher ainda se atrapalhava... Afastou-o de envergonhada. “Mas porquê? Se temos direito à vida como qualquer outro”. A mulher dizia que não, que ainda eram humildes e “gente pequena”. Bateu com o pé no chão, furioso que estava perante tão servil companheira.” Fê-lo com força e acordou!

Envergonhou-se da sua vaidade, do seu sonho, da sua estupidez. Levantou-se, pegou no saco e caminhou sem propósito. Estava com fome, embora sem dinheiro. “Nada há que subordine o estômago à bolsa” pensou.

A fome ia-lhe torturando o ventre. Que caimbrãs que ela fazia. Tomou coragem e entrou num restaurante. Chegou-se a um criado que parecia ser seu patrício e explicou-lhe a sua situação. Este, arranjou-lhe um emprego. Que bem! Tinha cama, mesa, trabalho e 30 rupias mensais!

Nessa mesma noite deitou ao correio uma carta para a mulher...

Afagou a carta antes de a deitar, e limpou as mãos húmidas de lágrimas, ao maro marco postal.

Agora estava menos bicho de mato. Conhecia a cidade. Esquecera, ser da aldeia. Enquanto tinha boas notícias tudo lhe correu bem! O filho, que esperava, já tinha nascido. O outro ia bem, assim diziam as cartas que lhe liam.

Depois as cartas começaram a rarear! A mulher dizia-se doente. Os filhos nunca mais ficavam livres de pequenas enfermidades. As dívidas cresciam! O barco que o trouxera, continuava a fazer viagens para a sua terra levando getne nos camarotes da 1a, e nos “decks”, e ele nem de “deck” podia viajar... tão sem dinheiro estava.

Um dia foi acusado de ter roubado trinta e tal rupias ao patrão. Foi preso . Esteve mês e qualquer coisa na polícia. Por fim, o juiz absolveu-o. Faltavam provas. Quando chegou ao quarto onde deixara o seu saco de viagem, esperava-o uma carta tarjada de negro. A mulher fora internada num hospital na enfermaria dos pobres. O seu filho mais velho falecera, por falta de dinheiro. “Que bonito que era, e quanto se parecia comigo” – soluçou. O outro filho estava também muito doente de baço. Definhava muito, enquanto a barriga crescia extraordinariamente – eram as águas da sua aldeia que provocavam semelhante mal! Depois de “ouvir” a carta pediu-a; dobrou-a, conservou-a muito juntinho ao coração, num bolso interior do casaco, pegou no saco e partiu sem destino.

Precisara de dinheiro, roubara-o, fora absolto e à sua família nenhumbem fizera. Riu-se do mundo, da justiça, dos homens e de si próprio. Lançou para longe o saco de viagem, cabriolou furiosamente e sentiu que já não estava em si. O tê-lo reconhecido, ainda mais o enlouqueceu.

Dali em diante, passou a ser o deleite da petizada. Despia em plena rua e pedia que o revistassem para verem se trazia contrabando! Quando levado à esquadra, por causar escândalo público, ria-se muito e dizia: Estou absolto! Tantas vezes lhe ouviram isso, que todos a ele se habituaram. Só os turistas achavam curioso vê-lo no meio de crianças, ora imitando o juiz, ora fazendo-se réu, ora advogado, para no fim dizer:

“Absolto!”

Tuesday 22 January 2013

Um Bibliografo - A Literatura Indo-Britânica (1970)

É um facto espantoso este que a literatura indo-britânica (isto é, livros de ficção escritos pelos indianos em inglês) teve um surto extraordinário depois da independência indiana.

Os indianos passaram a cultivar a língua inglesa há cerco de um século e meio, depois das célebres propostas de Macaulay de 1837, sugerindo, inter alia, o inglês como língua de instrução. No passado Toru Dutt aqui ou Manmohan Ghosh acolá, eram, por assim dizer, produtos acidentais de circunstâncias extraordinárias.

Não é assim hoje. Assim como a língua inglesa produziu uma literatura diferente do Reino Unido, nos Estados Unidos da América, da mesma forma hoje está-se a produzir na Índia uma literatura distinta, em língua inglesa, que discute a vida indiana, os seus hábitos, as reformas sociais, etc. Espera-se que, da mesma forma, possamos ver surgir diante dos nossos olhos uma literatura australiana, canadiana, das Índias Ocidentais, etc.

Este processo oferece as suas dificuldades num pais como o nosso que tem as suas próprias línguas que também possuem as suas literaturas. Mas o facto é que existem camadas sociais na Índia cuja vida passa-se num ambiente de língua inglesa, assim como em Goa ou entre os goeses existem agregados sociais que falam e pensam em português ou em inglês.

Ficariam esses elementos sem o veiculo de expressão? Surgiu daí a necessidade de se criar literatura na língua cultural em voga, embora seja estrangeira. Mas criar literatura numa língua que já a tem, e das melhores do mundo, levantava um óbice assaz poderoso. É a dificuldade que tinham antes experimentado os Americanos do Norte. Mas como a experiência social e nacional é diferente de país a país, havia justificação, para literaturas diferentes em cada pais, de qualquer padrão que fosse possível.

Quais seriam os escritores destacados da ficção indo-britânica?

Mulk Raj Anand é um dos mais prolíficos e bem conhecidos. Os seus romances, Untouchable, The Coolie, etc, são vastamente lidos. Ele é o Alves Redol da literatura indiana, descrevendo com simpatia a vida dos pobres e desafortunados da sorte.

Outro escritor igualmente prolífico é R. K. Narayan, com a sua ironia subtil e um dom e um dom natural de contar histórias: a acção dos seus romances tem lugar numa vila imaginária indiana, de nome Malgudi, como a Breda do Jacob e Dulce de GIP. Desde o seu primeiro romance Bachelor of Arts publicado em 1937, Narayan publicou catorze livros.

Raja Rao é outro escritor de grande envergadura, com residência em Paris. Num período de cerca de 40 anos produziu só quatro romances. O seu primeiro livro Kanthaputra discute a projecção da ideologia gandhiana numa pequena aldeia da costa do Malabar. A história é narrada por uma mulher analfabeta e simples. O seu segundo romance, The Serpent and the Rope, publicado depois de 22 anos, trouxe Raja Rao renome internacional. É em parte autobiográfico, recordando a sua busca das raízes espirituais do seu país. O herói é Ramaswamy que vive em Paris casado com uma senhora francesa. O Oriente e o Ocidente – estes dois mundos que se encontram mas não se confundem – estão discutidos neste romance. O mais recente romance de Raja Rao é The Cat and Shakespeare, tão enigmático como o título sugere, tendo sido serializado pelo Ill. Weekly. Raja Rao é profundo e díficul de ler.

Falei recentemente de Kushwant Singh, que projecta o Panjabe nos seus romances. Manohar Malgaonkar é um romancista que descreve a vida da nossa costa do Concão e lê-se com agrado. Bhabani Bhatacharjee é conhecido pela sua penetrante análise social. A escritor Kamala Markandeya, com cinco romances a seu crédito, atraiu a atenção internacional, estando alguns dos seus romances traduzidos para português. Balachandra Raja é conhecido pela sua sofisticação intelectual e penetração na tensão inter-cultural do indiano educado à ocidental, Nayantara Sehgal, filha de Vijayalakshmi, é também uma autora muito lida. Também Anita Desai fez muito cedo nome com os seus dois romances Cry the Peacock and Voices in the City.

Todos estes autores merecem ser lidos em Goa para se poder compreender melhor a alma indiana e os problemas que confrontam a nossa nação. Por razões históricas, um sector da nossa população não pode ler nenhuma língua indiana. Para eles esses livros em inglês são uma bela oportunidade para se compenetrarem do espírito de reforma e revolução social que prevalece no país.

MSM - A Professora (n.d)

Tlim... Tlim... Tlim...

Ana, ainda tonta de sono, ouviu o som do despertador que a acordava todos os dias.

Que ruído seria aquele? Parecia um barulho longínquo, qualquer som que lhe chegava, amortecido e suave aos ouvidos.

Mas já estava desperta agora e tomava consciência do que a cercava. Uma aguda sensação de monotonia e solidão apertou-lhe o coração. “Meu Deus!” -pensou Ana – Sempre a mesma coisa!” O despertador acordava-a, ela levantava-se, vestia-se, tomava o café e ia para a escola. Voltava, almoçava, descansava um bocadinho e tornava a ir. O trabalho acabava às 6 horas. Depois lia até a hora do jantar, e, logo depois ia para a cama; e era sempre a mesma coisa; não havia nada, nenhum facto que viesse modificar este programa tão igual.

Ana levantou-se, rezou e abriu a janela do quarto; a brisa matinal acariciou-lhe as faces e uma frescura agradável agitou-a. Encostou-se ao vão da janela e deixou-se ficar assim quieta.

O jardim da casa, ao lado, estava cheio de flores: uma sinfonia de cores que era um encanto para os olhos e um deleite para a alma – lindos cravos brancos e vermelhas, perpétuas brancas e lilases e, em volta, muito bem podados, arbustos de ganné-fulam, carregados de cachos de flores brancas que exalavam o seu cheiro forte e característico.

Uma aragem suave agitou as plantas e as olas dos coqueiros que estavam perto e, a acompanhar este quadro tão rico de cores, a música suave dos passarinhos, uns exprimindo mágoas sentidas outros alegrias exuberantes.

Ana, porém, a nenhuma destas tentativas e encantadoras manifestações da natureza ligava atenção. Recordações pungentes que ela sempre fazia por esquecer, assaltaram-na naquele momento.

Lembrou-se da tia, com quem vivera desde a morte dos pais, o que acontecera quando ela tinha apenas 3 anos. Era uma senhora rígida e fria, para quem os carinhos e gentilezas eram coisas absolutamente desnecessárias. Quando Ana cresceu, a tia lançou-lhe uma vez à cara o pão que ela lhe dava. Mas a órfã sabia que o pai lhe deixara meios suficientes para viver e respondeu com firmeza e dignidade: “Se a tia não me quer em sua casa, eu vou-me embora; eu sei que o meu querido pai me deixou o necessário para viver”.

Mas isto não convinha à má mulher, pois ela beneficiava dos rendimentos da órfã. Respondeu que não era conveniente que a sobrinha saísse da sua casa e aqui acabou o incidente.


Ana tornou-se assim retraída e taciturna. Na escola as colegas admiravam a sua inteligência brilhante, e ela ajudava-as no que podia. Ana tinha sede de ternura e ansiava por dedicar a alguém os sentimentos que entesourava no coração. Pensava ser professora. Amaria os seus alunos e eles compensá-la-iam do abandono que sofrera na vida.

Mas um dia tudo mudou. Ana tinha então 18 anos e estava no último ano do curso. Numa festa de escola conhecera um rapaz que se mostrara enamorado dela. Ana que era prudente por natureza e se tornara quase desconfiada com os desgostos por que passara, desta vez deixara-se prender. Para ela, coitada, aquele sentimento era a luz no meio da sua triste vida; mas depressa a luz apagou-se, deixando-a mais triste e só. Aquele homem abandonara-a esquecendo todas as promessas que lhe fizera.

Para Ana foi um choque terrível. No entanto corajosamente continuou a estudar, passou o exame final, sendo a primeira do curso, e foi leccionar para uma aldeia do interior.

Este episódio deixara-lhe funda marca na alma. A desilusão como que lhe endurecera o coração. Tudo a deixava indiferente, os alunos respeitavam-na e ela contentava-se com lhes ensinar as lições; não podia procurar-lhes a alma porque ela própria se sentia um corpo sem alma.

Ana despertou bruscamente do seu devaneio. Sacudiu a cabeça como que a afugentar inoportunas lembranças e correu a vestir-se, tomou à pressa uma chávena de café e precipitou-se para a escola. Gostava de chegar mais cedo para arrumar as coisas e receber os alunos, mas nesse dia chegou à hora.

Começaram as lições. Ana, enquanto fazia o ditado, costumava andar entre as filas das carteiras; e nesse dia, a certa altura, reparou que uma rapariguita, a Francisca, estava a chorar. Ana geralmente fingia que não via qualquer sinal de dor nos seus alunos para não ter de os consolar. Mas nesse dia, levada por não se sabe por que força, aproximou-se da Francisca e perguntou-lhe: “Que é que te aconteceu?” A pobrezinha, chorando mais violentamente, disse: “A minha mãe... a minha pobre mãe está muito doente,” Ana comoveu-se, depois de muitos anos, as lágrimas vieram-lhe aos olhos perante aquela sincera manifestação de dor e murmurou: “Não te aflijas, minha filha, a tua mãe há-de melhorar”, e fez-lhe uma festinha na cara.

Os alunos olhavam-na admirados, pois tinham-se acostumado às maneiras calmas e indiferentes da sua professora.

Para Ana aquele simples acontecimento foi uma mensagem. Quebrou-se o dique que lhe continha as emoções; compreendera que o sofrimento existe para todos e nós não nos devemos deixar vencer por ele, mas vencê-lo.

Compreendeu sobretudo a verdade destas singelas palavras: “A felicidade é um perfume; quando derramamos sobre as pessoas que nos rodeiam, algumas gotas dele também nos salpicam.”

Laxmanrao Sardessai - O Goês (1965)

Sou goês e sou perfeito
- Dizem – e ufano olho em redor
Eu possuo a arte da palavra
E admira o leitor o meu estro criador,
Sou músico e a melodia das minhas notas
Deleita os ouvidos e vibra os corações.
O piano, o violino, ou a guitarra
Quando os acaricio, tornam-se humanos
E falam uma linguagem de emoções.
Sou pintor e do meu peito
Brota o mistério de cores
Sou cantor e o canto que sai do meu peito,
Embriaga e empolga.
Eu sou orador e o meu verbo
Varre, sacode, revolve,
No Parlamento ou na praça,
A alma do auditório,
Sou eterno viajante do globo
E tenho um pé no pomar do meu chalé
E outro em Singapura ou em Calais.
Sou príncipe da cozinha
E as delícias que preparo
Entontecem os Rajás e os Lordes.
Eu domino os mares e os céus
E conquista com a minha bondade os estrangeiros.
“És tudo, amigo; és soberano em tudo
- Cochicha aos meus ouvidos um velho –
Mas és fraco e cobarde na politica!
És ambicioso e não sabes renunciar
A um conforto no altar duma ideia!”

Vimala Devi: Poetisa e Contista (1966)

Vimala Devi – pseudónimo literário da nossa esperançosa conterrânea, estabelecida em Londres, Teresa de Almeida Seabra – já não é estranha aos leitores de A Vida.

Alem da apreciação literária do seu último livro, feita há tempos, nessas colunas por um nosso autorizado colaborador, a própria escritora teve a amabilidade de nos honrar recentemente com um artigo em que revelou aos leitores deste jornal detalhes de um monumental projecto literário que traz entre mãos.

Acabamos de receber – amável oferta da gentil autora com uma assaz penhorante dedicatória – as suas duas obras que lhe têm criado justamente um indiscutido renome no mundo das letras portuguesas. Sem pretensão de critica literária, vamos procurar dar aos nossos leitores, nestas fugidias linhas uma pálida ideia da incipiente mas vigorosa produção dessa notável goesa.

Súria (1962), o seu primeiro livro publicado, é uma coletânea de 29 poemas de desigual tamanho e valor, todos inspirados em temas regionais e vazados numa linguagem de típico ressaibo goês, e constitui o terceiro volume da secção Poesia da Colecção Unidade publicada pela Agência Geral do Ultramar, de Lisboa, sob a direcção literária de Luís Forjaz Trigueiros, para autores nascidos ou radicados nas províncias ultramarinas portuguesas.

Unanimemente aplaudido pela critica, tanto a imrpensa lusa como alguns consagrados críticos de arte teceram-lhe os mais rasgados elogios. O Diário Popular saudou-o como uma “magnífica expressão da cultura goesa”, que A Voz não hesitou em reconhecer “à altura da nossa poesia contemporânea”. De Vimala Devi, no dizer de José António Moedas, “senhora duma forte personalidade poética”, o Diário de Notícias escreveu que “estamos em frente de um sério caso poético, de um estranho caso poético... Uma poesia que a vem colocar entre os puros valores revelados nos últimos vinte anos” e o Diário de Lisboa que é “um caso diferente e original na literatura contemporânea”.

Críticos de nomeada não lhe regatearam também louvores. Para Jorge de Sampaio, é “do melhor que temos lido nos últimos tempos”. Amâncio César vê na autora “uma individualide que se torna necessário ter em mente”. Até o grande João Gaspar Simões não encontra na poesia do continente “um acento tão fundo de sensualidade mística, de pureza conturbada pela tentação que um deus é capaz de suscitar na carne de pétalas de uma mulher”. E Natércia Freire acha essa poesia “tão perfeita e essencial, tão densa e secreta, como se pode ser quando se percorreu já um doloroso caminho de ambições e exigências, de lutas entre a palavra e a forma”.

Para pano de mostra, destacámos da poesia GAA, os seguintes versos cheios de nostalgia, ao mesmo tempo impregnados de uma visão como que profética:

O Súria Divino

Esconde-se tímido

Cobrinhdo de luto

Teus rios e prados!

Calam-se murdangas e batuques;

Mandós são lamentos

Do folclore em agonia...



Teu brado de protesto

Como eco abafado

Guardei no sorriso

Que me deste em criança,

E a tua expressão de luar

Na noite de amor mais fundo

Será o meu único enlevo

No sonho da noite imensa.

Envolta em redor do sândalo,

Serei a voz da consciência;

A voz de dois mundos!

Monção (1963) é um livro de contos – Contos de Goa, como se diz em subtítulo em português e em concani, escrito em devanágari, - integrado a colecção Dédalo. São 13 aguarelas regionais, descrevendo cenas da vida goesa, tanto cristã quanto hindu, de que os editores dizem: “É a alma do povo goês, com os seus impalpáveis paradoxos, que surge nestes contos de Vimala Devi. A sua galeria de tipos humanos, batcares e curumbins, manducares, católicos, hindus e descendentes com nomes de reis, mostra-nos sem disfarces, a verdadeira realidade de Goa. A ex (segue na 4a página) pressão portuguesa que a informa não consegue, porém, abafar a sua essência intrinsicamente oriental, revelada na sua linguagem e principalmente, na sua posição perante a obra de arte, que, como muito bem disse Prabhakar Kanekar, é uma posição imanente, de fora para dentro, ao contrário da posição transcendente, de denro para fora, que toma o artista ocidental”.

Para que o leitor possa ajuizar por sua conta, transcrevemos aqui um trecho do conto "O Genro Comensal", o africanista recém-regressado de Moçambique, pretendente à mão de uma solteirona rica:

“Francisco João Barreto, mais conhecido por Franjoão, engordara muito nos seus dez anos de África. Não se podia dizer que fosse obeso, mas como era baixito e a calva tinha aumentado muito, parecia mais redondo, do que na realidade. Aliava a tudo isto uma grande insatisfação, pois, por mais esforços que fizesse, não conseguia progredir na vida. Faziam-lhe toda a sorte de desconsiderações, abusavam da sua boa-vontade, e os colegas iam-lhe passando à frente nas promoções. E ainda ele tivera a coragem de emigrar, que o irmão Franxavier conservava-se teimosamente agarrado à propriedade, na velha casa em ruínas, de paredes rachadas, que os manducares haviam quase totalmente abandonado e que mal dava para o arroz caril. O seu grande sonho, quando partira para Moçambique, fora juntar dinheiro e poder regressar ao esplendor passado. Mas tudo em vão. Dez anos tinham passado e com muito sacrifício conseguira finalmente voltar a Goa para gozar a graciosa. E foi reencontrar apenas miséria, desolação e ruínas, e a mulher, a Belmira, enrugada, caduca. Os poucos milhares de rupias que amealhara não chegariam para grande coisa.

Franjoão não perdera, no entanto, a sua bem conhecida alegria, que o tornara, no seu tempo, tão popular nas festas dos clubes e nos piqueniques.”

Apresentando aos leitores estas primícias literárias de uma distinta conterrânea e renovando a expressão do nosso reconhecimento pela fineza com que nos distinguiu, fazemos votos por que continue a honrar o nome de Goa em terras de Europa.

RV Pandit - Presença Divina (1968)

Nós, os homens
O mundo não vemos
Duma só vez.

Vemo-lo em trechos...
Parcialmente,
Vemo-lo quando muito
Na extensão duma milha
Tão fraca é a nossa visão.
Nem lunetas, nem telescópios
Podem ajudar a nossa visão fraca.

Vai o homem à estratosfera
Mas não vê claro

Se o homem pudesse ver
Ao mesmo tempo
Tudo o que passa
Por todo o mundo...

Nos picos dos Himalaias
Nas selvas da África
Nos fundos dos mares
De Norte a Sul
Do Oriente a Ocidente...

Só então...
O Homem teria
Uma visão fugaz de Deus!