Monday 18 March 2013

Mécia Elvina de Sousa - Amor da Pátria (1963)

Foi numa noite brumosa e nevoenta, como são geralmente nesta época as noites nas regiões montanhosas do Himalaia.

Num casebre desgarrado, à beira do caminho de ferro, a tiritar de fio junto da lareira, estava o Ramá, um jovem ainda imberbe, velando a cabeceira do pai enfermo que jazia na sua enxerga meio apodrecida, a um cantinho da habitação.

Seria meia-noite, quando muito... Súbito, uma detonação forte reboou pelas quebradas da serra, abalando a pobre cabana desde as fundações.

Ramá salta de repelão do seu cantinho, esgueirando a cabeça pela porta entreaberta e procura inquirir a origem do estranho fenómeno.

Nada enxergando pelo vão da porta, Ramá sai do eirado da casa a ver se descortinava algum vestígio do misterioso abalo. A serração da noite não permitia ver um palmo diante do nariz. A neve inclemente açoitava-lhe o rosto enregelado pelo frio cortante da noite.

Mas agora caíra tudo em silêncio, cortado apenas, de longe em longe, pelo mugido intermitente de uma cascata longínqua a despenhar-se das alturas para o fundo vale de tenebrosas furnas. Seria o sinal de avanço do inimigo que se dizia ter ultrapassado a fronteira? Ou seria acto de sabotagem dos traidores da Pátria, camuflados talvez em vigias do caminho de ferro?

Tinha de apurar a verdade, custasse o que custasse, embora tivesse de jogar nisso a sua vida.

Embrulhando-se na sua capa surrada de pele, um gorro de lã grosseira na cabeça, Rama lá foi seguindo com a sua lâmpada de furta-fogo, a caminho da ponte donde lhe parecia ter partido o infernal estrondo.

O frio gélido da noite penetrava até a medula dos ossos. Era o sopro glacial do Himalaia, a álgida mensagem dos picos de neve perpétuos que se erguiam alterosos de todos os lados. Uma espessa camada de neve cobria o atalho, dificultando a marcha já de si penosa.

Ia-se aproximando agora da terrível cascata, cujo bramido cavo e soturno embravecia de momento a momento com as catadupas da chuva que caía ininterrupta desde o cair da tarde. Uma rajada de vento agreste quase que o ia despenhando, ribanceira abaixo. Equilibrou-se como pode e, lutando conta a fúria dos elementos, lá foi avançando a custo, a tiritar de frio, e eis que, chegado à testa da ponte, vê horrorizado o abismo enorme que se abria a seus pés. A ponte em toda a sua extensão fora destruída por mão criminosa, certamente a soldo do inimigo.

- Deus do Céu! Bradou, num grito lacinante de angústia, a pobre criança, lembrando-se que daí a momentos passaria por lá o comboio a transportar armamento e tropas para a fronteira.

- Que seria dos nossos soldados?

Não havia tempo para hesitações. Corre, voa célere à sua cabana. Dir-se-ia que uma rajada furiosa de vento o impelia pela ladeira íngreme. Cabriolava de rocha em rocha, quase de olhos fechados.

Mais uns saltos apenas e ei-lo no umbral do seu casebre, esbaforido a comprimir o peito com as mãos.

Empuxa com violência a porta que cede ao poderoso impulso de braços nervosos e entra de roldão no recinto onde jazia o pai enfermo que desperta sobressaltado com a algazarra.

Uma voz dentro, desabafa de um fôlego, perante o pai estremunhado do sono, a terrível mensagem que levava.

- Temos que acudir a tempo para evitar a catástrofe – rematou ofegante o jovem.

- Vai, vai depressa, meu filho – gemeu o pai.

E depois com a vez sumida com o sofrimento, acrescentou: está aí no canto do meu baú uma lanterna verde-vermelha dos guardas do caminho de ferro. Vai com ela dar o sinal de alarme à aproximação do comboio... Avança quanto puderes. Quanto mais longe, tanto melhor... já compreendes o resto.

Ramá não quis ouvir mais... Acende a lanterna do pai e salta para a linha férrea, resolvido a enfrentar todos os perigos para salvar a vida dos soldados.

Impelido por uma força oculta, o rapaz parecia ter asas nos pés, na ânsia febril de avançar ao encontro do comboio. Percorria nesse momento a linha férrea no trecho perigoso de uma curva brusca a orlar um precipício medonho. Nem por isso Ramá refreava a sua louca corrida.

Súbito, num dos torcículos do caminho, enxerga o foco intenso da lanterna central da locomotiva, que vinha avançando vertiginosamente para o rapaz.

Postado no meio da linha férrea com mãos convulsas, Ramá agita febrilmente a minúscula lanterna com luz vermelha a dar rebate do perigo iminente.

Ouve-se o chiar agudo dos freios da locomotiva a travar a marcha vertiginosa do comboio. Neste instante o clarão intenso do foco da locomotiva, já próxima, bate em cheio nos olhos de Ramá, que, ofuscado pela luz deslumbrante, salta fora da linha para evitar o embate. Porém, o pulo, formado na precipitação da fuga, foi tão desastrado na precipitação da fuga, foi tão desastrado que o pobre rapaz, desequilibrando-se, deslizou pela beira escorregadia da estreita orla e num instante sumiu-se nas trevas do abismo hiante que se lhe abria aos pés...

No dia seguinte foram encontrar o cadáver do pobre rapaz, reduzido a uma mole informe, no fundo do precipício... Oferecera a sua vida em holocausto pela causa santa da sua querida Pátria.

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