Monday 29 October 2012

Telo de Mascarenhas - O Emigrante (1975)

Luís Bernardo era regedor de aldeia. Com o seu saber e experiência de vida, administrava Justiça nos limitados domínios da sua jurisdição, com raro tacto e rectidão. Era, por isso, respeitado e acatado; e os seus concelhos tinham força da lei para a pobre gente da aldeia.

Todas as manhãs, de fato branco, o casaco abotoado até ao queixo, o boné encafuado na cabeça e a bengala que era o seu bastão de mando, dava o seu passeio habitual para se inteirar da vida do burgo, ouvir as queixas e reclamações e dar-lhes pronta solução.

A vida de regedor da aldeia não é um mar de rosas. Contudo, a par de trabalhos, arrelias e canseiras, tem também as suas compensações. Todo o africanista ou bombaísta que regresse após longos anos de labuta no Continente Negro, em Bombaim, ou como embarcadiço nos grandes transatlânticos, é ao regedor-batcará que faz a sua primeira visita com alguma lembrança, e pinta-lhe com cores vivas e até com cores por sua conta e risco, as coisas maravilhosas que viu na Grande Índia e na estranja, no que, não raro, leva a palma ao famoso Marco Pólo.

João António era filho de gente modesta. Inteligente e empreendedor, com o seu sonho de transpor mares e ver terras novas, estudara a algumas classes de inglês na escola de Jackson e fora para Bombaim para se empregar a bordo. E era agora dispenseiro dum dos barcos da P&O, que faz carreiras para Europa.

“Pode crer, batcará”, disse João António a Luís Bernando, “aquilo é que são terras ricas e progressivas. Grandes cidades, grandes e florescentes centros industriais.. E nós aqui a foassar nestas aldeias atrasadas em tudo.”

“O que é que tu queres, João António? Se todos vocês, emigrantes, estivessem de acordo podíamos fazer grandes melhoramentos na nossa aldeia”, disse Luís Bernando.

“E sabe, batcará, como ‘elas’ lá fora, identificam os goeses?”

“Hum, - como é?”

“Eu conto. Uma noite, em Marseilles, fui, com mais dois companheiros meus, visitar uma daquelas casas de luxo das professional beauties, por mera curiosidade, para ver como aquilo era por dentro e se correspondia à realidade aquilo que me tinham contado. Veio sentar-se ao meu lado uma rapariga muito loura, muito pintada, e perguntou-me: “Êtes-vous Goannais, mon chéri?”. “Oui, mademoiselle”, respondi-lhe.

Vai ela, então, sem mais cerimónias, mete a mão pelo peitilho da minha camisa para ver se eu trazia ao pescoço a corrente de oiro com a cruz.

“Com que, então, os goeses lá fora são conhecidos por trazerem ao pescoço a corrente de oiro com a cruz?”, disse Luís Bernardo soltando uma das suas estrondosas e divertidas gargalhadas. “Essa é de primeira ordem. Hei-de contar isso ao nosso vigário para ver com que cor ele fica”.

“Deus nos livre, batcará. É capaz de barafustar no púlpito e chamar imoralões aos emigrantes”

“E o que pensas fazer agora, João António?”, perguntou Luís Bernando.

O ghor-mand é o terreno em volta da casa que sendo pertença do dono da propriedade, este impõe aos seus moradores ou mundcars, obrigações verdadeiramente onerosas: e as várzeas das Comunidades são os grandes proprietários que as tomam de arrendamento em haste pública ou gaun-pon, disputando os lanços em lutas renhidas e as sub-arrendam aos pequenos cultivadores sem terras, mediante rendas exorbitantes, explorando-os sem comiseração. Por isso, ser dono da casa com uma nesga de terreno em volta para servir de logradouro, e uma pequena várzea onde possa semear arroz no tempo das chuvas e, em tempo seco pimenteiras, legumes e batata doce para consumo doméstico, abrindo um poço quando se não tem serventia da lagoa para aguar a plantação, é o maior sonho do mundcar o que lhe dá o desafogo e a satisfação de ser um pequeno proprietário e o liberta das condições onerosas do sistema de mundcarato.

Outra compensação para a vida de regedor de aldeia são os ‘brincos’ goeses e vem de longe aquele costume, de quando os jograis iam de aldeia em aldeia, de corte, representar os episódios heróicos e líricos das nossas grandes epopeias e lendas doiradas.

Música estridente de flautas e tambores anuncia a aproximação de ‘brinco’. E a gente da aldeia acorre; pressurosa e exultante, para se juntar à volta dos cantadores e bailarinos que, nos seus trajes de fantasia, adornos e coroas auriflamantes de papel doirado, cantam, mimam e dançam as façanhas bélicas de Ramá e Ravon, dos Pandavas e Kauravas, os jeitos de audácia e bravura de Shivaji e Custobá (um herói local) ou comentam, com graça e chiste, malícia e bom humor, a vida da gente da aldeia, numa espécie de revista do ano, para gláudio do auditório.

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