Thursday 28 July 2011

Alfredo Bragança - O Grande Poeta RV Pandit (1968)

Alguns dias depois da estrondosa aclamação que R.V. Pandit, o poeta festejado de Goa, recebeu com uma condecoração honorífica das Filipinas, passo a falar dele no que mais me impressionou na sua poesia de alto recorte literário.

R.V. Pandit, autor de quatro livros em inglês e sete em Konkani, tendo também deixado gravados os seus pensamentos em artigos em marata e inglês focando temas de actualidade social e cultural. Redigiu com proficiência a revista marata Bharati em 1953. Obteve o grau de Bacharelato, e apesar de ser estudante de ciências, bem cedo revelou o seu pendor pelas letras. Já versejava em inglês aos 15 anos. Divulgou ao depois os seus poemas em marata. Porém, só mais tarde sob a mais profunda influência dos grandes pensadores como Tagore e Kakasaheb Kalelkar é que Pandit descobriu-se, e em 1954 principiou a dar expressão plástica aos sentimentos, pensamentos e anseios de grande poeta que é na nossa língua-mãe Konkani.

RV Pandit é, sem sombra de dúvida, um “grande” poeta. É grande porque é autor de muitas obras? Não. É grande porque os seus poemas foram vertidos para hindi, kanada, inglês e português ou porque escreveu em algumas delas? Não. Pandit é grande porque é pequeno. E ser pequeno é inteirar-se dos sentimentos e anseios dos pequenos, amá-los a pugnar pelos mesmos.

A paz que o “Gauddó” procura em vão através das longínquas Nações Unidas, como se patenteia no seu poemeto “Hanv Ek Ihan Munis” (Sou um Homem Pequeno) ou a tranquilidade interna que ele próprio anseia, só pode consegui-los no bem-estar dos pequenos. No mesmo poemeto volta a bater na mesma tecla: não obstante toda a sorte de correntes e esforços para nivelar as diferenças, tudo se condensa na diferença principal – de o opressor contra o oprimido. Dum lado, os arranha-céus, e doutro os “zhopddis” da Índia, os “slums” da Inglaterra, os “ghettos” da América e as “favelas” do Brasil.

Tudo isto indica que o Pandit não está a sonhar na Torre de Marfim, nem tão pouco a inspirar-se nos livros. Ele é grande porque é formado pela Universidade da Vida. Como poeta ele penetra no âmago da vida dos pobrezinhos, sente o seu coração palpitar pelos humildes que bradam pela codeia de duro pão. Refereindo-se ao poemeto “Hanv Ek Ihan Munis”, diz o Hugh McKinley que escreveu uma longa apreciação literária no “Athens Daily Post”, que o tal poemeto “actua como uma bomba napalm sobre as nossas ilusões e afastamento da responsabilidade activa”; e condensando a sua critica literária, acrescenta: ‘nos versos do Sr. Pandit temos uma expressão quente destes temas que criam a vida: o lar, a família, o amor conjugal, a ordem e a glória da natureza.”

A personalidade do R.V. Pandit cresce com raízes no solo. Ela cheira à terra vermelha. Os seus poemas são plantas regadas com o suor dos “gauddé.” O seu coração pulsa pelo sofrimento dos “Kunbis” e dos pobres campesinos. Ele vê tudo sob o prisma do realismo nu da existência. Mesmo a sua imaginação não libra voos como a dos bardos românticos. A sua imaginação é bem térrea. Eis o motivo por que a sua poesia é inspirada, em grande parte, na cultura folclórica de provérbios e superstições. Não só ele ausculta os sentimentos e pensamentos dos “gauddés”, mas identifica-se com eles ainda na expressão. A sua colectânea de poemas “Mujem Guit Gauddeanchem” é toda simplicidade, despida de ornamentos artificias. E a simplicidade é grandeza, escreveu algures o Victor Hugo. O Pandit canta noutro passo que a grandeza da palha reside no seu crescer por si mesmo à chuva e ao sol.

Quando vemos o “Bhatkar-Saukar”, sr. Pandit ao volante do seu carro e morando no Altinho, a primeira pergunta que nos aflora nos lábios: “É o mesmo Pandit que se identifica com os “gauddé”? Sim, “ecce homo”. Contudo Pandit não verseja na Torre de Marfim. Algumas vezes por semana, o Pandit vai comisturar-se com os seus co-aldeanos, a arraia-miúda em Palém de Siridão. Não se sente à vontade longe deles.

O amor aos humildes abarca toda a humanidade, e o apelo dos seus poemas é universal. Na sua cadência se sente o rítmico bater do coração que geme e sofre por uma dura côdea de pão. Eis o espírito de fraternidade que extende o seu círculo dum canto a outro do mundo:

“Tum ani Hanv,
Dogui bhav bhav,
Bhashek lagun
Dusman zaliat”

Noutro poema, “Hem Mhujem Ghor”, o espírito universitária de poeta canta “hoje e cá, amanhã lá, depois não sei onde”.

Os poemas de Garcia Lorca constituem uma tela em que se projecta fielmente o panorama da Espanha. Onde está a Espanha, lá está o imortal Lorca. Enquanto viver a Goan (Koncão) lá estará o Pandit sempre vivo na memória Pandit também pinta com palavras o cenário soberbo de riachos, mangueiras e coqueiros. Porém, não cantou como Lorca que a Morte é sombra da Vida, Lorca que morreu tragicamente na Guerra Civil da Espanha em 1936 com apenas 38 primaveras. Pandit conta hoje 50 anos.

A fé inabalável nos destinos da humanidade leva-o a arrancar os seguintes versos chamejantes cheios de visão profética:

“Aiz nam faleam
Tumkam amchi yad zatoli
...
Ami tumche bhavuch
Tumche prem korpi.
...
Ani tea dissa
Soglo sonsvar – hem ek rashtr
Sogle rong, kelle gore,
Hanchi ekutch zat – mnnis zat
Ekuch dhorm – mnnis dhorm
Oxem tumkam distolem –
Tea dissachi hanv vatt polle tam”

Outro poema em que anuncia que tudo se faz por Deus, rescende à grinalda de Tagore a Deus enquanto noutro passo o poeta não deixa de se insurgir contra o formalismos, como no-lo atesta “Fatrachi Puza” (Adoração à Pedra). Acho que devia lançar ao limbo de obscuridade poucas poesias de pouco quilate como “Mudoi” (O Capital de Amor) e “Nova Torecham Kalliz” (Nova Espécie de Coração). Porém, o seu verso livre é admirável, lembrando-nos sempre do insigne poeta da democracia Walt Whitman. Que mais poesias de povo venham à luz da pena dum dos poetas mais representativos de Goa de todos os tempos, R. V. Pandit.

Alfredo Bragança - Desilusão (1968)

É tudo desilusão,
Nem arroz, nem pão.
É língua a arder Troas
Na Índia...
A Índia em pedaços,
A língua é tudo,
Pois não!
Muita politica,
Estômagos vazios,
Enquanto uns poucos tubarões
Se desfazem
Em gargalhadas satânicas.

As cinzas de Nehru e Shastri
Recusam-se
A comisturar com a terra,
E alimentar a seara
Que gera o pão.
Pão que não há.
Açúcar também não.

Viva a Liberdade
Apertando o cinturão.
Jesus Cristo
Não desceu da Cruz,
Não, não,
Pobre da Humanidade
Suspensa sem luz,
Em perene incerteza.

Tudo isto,
Sem cor, sem luz,
Sem arroz, sem pão,
É desilusão.

Review of Canção da Alma (1962)

Dentre os diversos livros e opúsculos que repousam sobre a nossa mesa de trabalho, aguardando revista ou análise critica, chegou a vez de nos referirmos à “Canção da Alma”, livro de versos de Alfredo Bragança, poeta goês da Nova Geração.

Trata-se duma colecção de poesias dos mais diversos tipos que vão desde a quadra ao soneto e desde o poemeto ao verso livre, escritos em língua portuguesa e reunidos num volume de boa apresentação gráfica pelas edições “Alvorada”.

Adentro do tema proposto, a “Canção da Alma” exprime os anseios da alma do poeta que se manifestam logo nos seus primeiros versos como a “Prece do Natal” que, embora de contextura simples, põem bem à mostra as tendências do seu espírito educado no velho lar goês, onde o Natal e o Presépio são temas aliciantes da juventude.

Outros temas, outras poesias vêm depois, tais como “Os Finados”, e “Via Dolorosa”, “Aspiração”, “Mors Liberatrix”, “Templo dos Poetas”, “Sonho Desfeito”, e outras ainda, através das quais se sente um decidido esforço do autor de não se deter apenas nas líricas perfumadas que de resto duma maneira geral marcam quase sempre o inicio na vida literária

Esse manifesto esforço de tratar temas com mais largueza de visão, e os anseios da alma o destino das existências, a dor, a alegria ou o travo amargo da vida, adentro das formas da poética regular, sentem-se nos seus versos como a “Missão do Poeta”, “Anseio Alado”, “As duas vozes”, mas, particularmente, nos sonetos “Aspiração”, “Transcendentalismo”, “Infância”, “Horas Esbraseadas”, “Angústia”, “Ânsia do Intangível”, “Incêndio da Alma”. São versos de poeta que sente a natureza e a vida e escuta os estranhos murmúrios sobre os quais passa indiferente, o egoísta ou o mundano, ou aquele para quem só o que luz é oiro e que na “Mãe”, tributo à memória de quem lhe deu o ser, encontram a expressão mais apurada e perfeita.

Esses versos, particularmente, e a sua expressão poética dentro das formas tradicionais, levam-nos a pensar como deveria ter sido grande no espírito de Alfredo Bragança a influência dos poetas do Romantismo que, aliás, foi notável entre gerações de goeses que se dedicaram às Letras e às Artes.

Esse ponto de partida para o desenvolvimento da arte poética entre nós, é indiscutível. Ele demonstra ao mesmo tempo quão grande foi a influência que a literatura portuguesa exerceu no nosso meio através de todas as suas Escolas, desde a clássica, a romântica e realista, quer pelo ensino liceal, quer ainda pelo interesse que os mesmos estudod despertavam nas classes ilustradas do pais, através da leitura das obras do Padre Vieira e Bernardes e dos melhores escritores portugueses como Oliveira Martins, Herculano, Eça, Ramalho, e poetas, desde Eugénio de Castro e Teixeira de Pascoais a Fernando Pessoa e outros, sem falarmos ainda da leitura das obras dos melhores escritores franceses, ingleses e alemães que tinham cultores apaixonados no nosso meio de Goa.

Todavia é digno de registo o facto de que Alfredo Bragança, estando ausente de Goa durante o longo período de 15 anos na União Indiana onde fez os seus estudos de MA, entregando-se à absorvente actividade naquele meio, soubesse conservar fortes esses laços que o ligavam à língua portuguesa, embora tivesse completado em Goa os seus estudos do Liceu.

O seu livro “Canção da Alma”, embora em uma ou outra poesia se note a repetição do termo é uma prova específica de que a língua portuguesa constitui um belo veiculo na expressão do pensamento, mas só quando posta ao serviço de quem trabalha nela com particular devoção, na Ânsia do universal.

Bem afirmou o autor no proémio do seu livro ao referir-se aos escritores goeses que deixaram suas produções, tanto em prosa como em poesia, em língua portuguesa.
O mesmo afirma peremptoriamente Kaka Kalelkar, companheiro e colaborador de Gandhi como obreiro social quando escreve na “Mensagem” dirigida a Alfredo Bragança e arquivado no mesmo livro:
“O português não é falado apenas em Portugal, mas igualmente no Brasil, em Moçambique, Angola e noutras partes. E na nossa própria terra, muitos dos meus compatriotas não só apreciam a lginua portuguesa, mais ainda o amam, tal o seu ritmo e beleza; não admira, portanto, que muitos deles tenham querido exprimir os seus mais íntimos anseios e sentimentos nessa língua”
E com essas palavras, que exprimem uma das facetas mais simpáticas do livro “Canção da Alma”, desejamos a Alfredo Bragança os melhores trunfos na sua vida literária com votos pelo aparecimento de novos trabalhos da sua lavra.

Amadeu da Costa Prazeres - O Drama dos Séculos (1968)

Mário Cabral e Sá ofereceu-me um dia um gira-discos, em penhor de amizade. Era excelente mas tinha um senão: ligado à corrente e ao alto-falante do rádio e posto a funcionar, os discos gravam, giravam e iam girando sem nada dizer, mudos e silenciosos. Como ao cavalo dado não se lhe olha ao dente nada disse ao meu amigo Mário e procurei investigar a causa da mudez do aparelho: o cartucho electrónico da cabeça do seu braço estava avariado.

Como nessas alturas partia para Europa, retirei o cartucho para comprar outro igual. A primeira cidade do meu itinerário onde me demorava era Zurich e banhado, comido, bebido e vestido no hotel após a chegada fui percorrer as lojas, para comprar a peça. Não havia em nenhuma parte. Havia de outra marca que podiam servir mas não se adaptavam na cabeça do braço. Ia resignar-me a tentar em Londres, pois o gira-discos era de manufactura inglesa, quando se acercou de mim um rapaz de dezoito anos prováveis e insistiu: “olhe, compre e venha comigo”.

Comprei e acompanhei-o. Numa água furtada de minúsculos dimensões, armara sobre um banco de pinho a sua minúscula oficina. Num canto sobre uma mesinha de pinho uns livros e duas rosas numa jarra de água. Noutro canto num leito estreito a cama limpa e arrumada. Estudava, dormia e trabalhava ali em horas vagas. Como trabalho semi-permanente servia num restaurante e feito o exame final terminado aquele semestre esperava obter o seu diploma de engenheiro técnico. Por espaço de uns quinze minutos, que passei fascinado com a sua história a vê-lo trabalhar, manipulou pinças, despicios de vários calibres, limas e soldador eléctrico e no fim a cabeça do braço do meu gira-discos estava munida do cartucho. Dei-lhe seis francos pelo trabalho e convidei-o para beber comigo uma cerveja. Levou-me ao restaurante onde servia e, sentados a uma das mesas, bebemos e conversámos: àquela hora não era criado. Era freguês, instruído e culto.
Segundo facto. Quando o Japão estava prostrado pela derrota na segunda Guerra Mundial dois rapazes, formados em Engenharia electrotécnica, puseram-se a matutar ao meio de ruínas da cidade bombardeada sobre que rumo iam dar à vida. Coligiram bocados de sucata, arranjaram ferramentas, apossaram-se de uma garagem dilapidada e à custa de trabalho e engenho fabricaram um pequeno rádio-transistor. A tentativa dera resultado. Fabricaram outro, mais outro, mais outro. Foram vendendo os aparelhos que fabricavam. Engajaram um rapaz e uma rapariga como primeiros operários da empresa incipiente. E hoje a fábrica dos aparelhos “Sony”, que principiou numa garagem dilapidada como vontade de sobreviver e triunfar de dois jovens castigados pela derrota do seu pais, é um dos símbolos da ressurreição do Japão à custa do trabalho dos seus filhos.
Terceiro facto: uma das primeiras cartas do meu filho escritas de Munique estava recheada de elogios pelo trabalho dos alemães: ‘Nem calculas, pai, como esta gente trabalha!” Ele trabalhava então, como aluno-aprendiz da Universidade Técnica de Munique, numa fábrica de Siemens em Nuremberg. O governo indiano tinha mandado para Alemanha como bolseiros dois engenheiros para ‘advance training’. Estavam naquela fábrica onde os engenheiros alemães fizeram praticamente todas as espécies de tarefas dos operários sob as suas ordens. Aos alunos-aprendizes, como ao meu filho, mandaram à entrada limar as peças e fazer gradualmente todos os trabalhos até à montagem das máquinas. Pois a respeito desses dois bolseiros, a carta dizia: ‘Estes nossos dois compatriotas andam à volta das máquinas, afastados, com receio de mancharem seus fatos, como se estivessem a observar animais num jardim zoológico. Que vão fazer depois de voltarem à Índia? Que vão levar daqui? Só a vanglória de serem “foreign trained”!

Todos estes factos ocorreram-me à mente num quarto de hotel em Bombaim. Tinha ido a Damão em serviço profissional. Reservara o bilhete de volta no avião para o dia 10 do corrente mês. Como o meu trabalho terminou mais cedo do que esperava voltei a Bombaim no dia 8 e fui direitinho ao escritório da ‘Indian Airlines’ para saber se podia antecipar o meu regresso a Goa tomando o avião do dia 9. Entrei e me abanquei ao balcão com o bilhete na mão. À minha frente, uma empregada e um empregado – que naturalmente foram contratados e são pagos para serem acessíveis aos passageiros – ciciavam aos ouvidos um de outro, indiferentes aos que passava em volta. De vez em quando olhavam para mim, para o bilhete que tinha na mão, e sem se importarem comigo voltavam aos esus arrulhos. Passaram assim quinze minutos. Perdi a paciência e estava para lhes dizer coisas duras quando o protagonista macho do dueto inaudível levantou-se da cadeira e outro que a veio ocupar informou-se da minha pretensão. Não havia lugar vago no avião e tive que marcar passos num hotel de Bombaim.

Estes episódios vieram-me à mente ao ler no quarto do hotel a revista de um livro num velho número de um magazine. O livro intitula-se ‘Asian Drama;, livro volumoso de 2.500 páginas em três volumes. É seu autor o economista sueco Gunnar Myrdal cujo livro ‘American Dilemma’, publicado em 1944 é um estudo sóbrio e autorizado sobre o preto americano. Comissionado pelo Twentieth-Century Fund para estudar os problemas e as perspectivas do Sul da Ásia, o economista levou dez anos para completar a tarefa, três dos quais viajando na vasta área ao sul da periferia da Rússia e China. Constituída por onze nações, desde o Paquistão à Indonésia, a área abriga quase um terço da população do mundo porém enfrenta mais de dois terços dos problemas mundiais: pobreza esmagadora, crescimento demográfico ruinoso, o fardo do passado colonial e agressores armados comunistas no Sueste Asiático. Myrdal é sueco, o seu pais não tem pecados coloniais e as conclusões do seu estudo não são coloridas de preconceitos ou ideias pré-concebidas que tendemos atribuir aos ocidentais que tiveram colónias. Reconhecendo que existem as condições vulgarmente citadas como responsável pelo atraso da Ásia – a falta do capital, dos recursos da educação – Myrdal diz porém que muito mais prejudiciais são os traços de carácter básicos e atitudes dos asiáticos que passa a enumerar: ‘níveis baixos de disciplina, pontualidade e ordenamento; crenças supersticiosas e visão irracional; falta de vigilância, adaptabilidade, ambição e prontidão geral para mudança e experimentação; desprezo pelo trabalho manual; submissão à autoridade e à exploração; aptidão baixa para colaboração.”
Desprezo pelo trabalho manual – sim, que exacta definição não é, por exemplo, das nossas atitudes, nesta nossa minúscula parcela da Ásia! Basta aprender a soletrar duas palavras na escola primária e adeus o trabalho manual – o menino já é doutor.

Jeremias Carvalho - Telo de Mascarenhas (1979)

Duas palavras só, que nem a míngua de tempo nem o abalo de espírito causado pela muita brusca notícia nos permitem mais neste momento.

Ó alma forte do Dr. Telo!, quão longo estaríamos de por sombra imaginar sequer, quando mal completam dois dias, nos encontrámos no passeio rente as oficinas d’O Heraldo e tivemos uma amigável cavaco casual, que tão de chofre desaparecias para sempre deste mundo de tribulações...
Decerto a morte jamais te poderia amedrontar, embora o surpreendesse, como a nós, o vir ela tão traiçoeira, pois além de habituado às coisas que aterram como o vulgar de Lineu , eras serenamente altivo, de rijo tempero, sem vacilações – numa palavras, eras um forte, eras um autêntico d’A Grei do teu soneto:

“Corre nas minhas veias o sangue dos Kshatriyás,
(Eu abomino as castas mas venero a Grei),
Os meus ancestros aguerridos criaram Pátrias
Talharam reinos, firmaram pactos, ditaram Lei.

Da Rajaputana, terra desértica e adusta,
Abandonado seus fortes e seus castelos,
Seus feudos e cidades de grandeza vetusta,
Vieram fixar-se nestes plainos e vales belos.

Esforçados guerreiros, com o seu código antigo
De honra e orgulho, de altivez e pundonor,
Não sabiam voltar a cara na hora dura de perigo.

As donas airosas, ante o bárbaro invasor,
Quando os homens eram vencidos pelo inimgo
Lançavam-se às piras do fogo purificador”
- Telo de Mascarenhas, A Grei, in Goa – Terra Minha Amada, p.21

Não pode o país deixar de lamentar o silenciar-se da brilhante pena do Dr. Telo cuja verve culta e exuberante em prosa e verso tão assiduamente se fazia apreciada pelos amigos e inimigos, pelo saber e arte.

Deus prodigalize à tua alma, a paz eterna, em que o mundo pouco generoso foi para com o teu
corpo.

Aires Colaço - Uma Carta (1982)

Minha querida amiga:

Da minha janela virada para o mar, do litoral do sul de Goa, de regresso à minha terra após uma longa ausência, te escrevo esta carta, feita de amor e saudades dos tempos que, há muito, deixaram de nos sorrir, assim que deixámos os bancos daquele velho liceu, plantado ao sopé do altinho, quando por entre sorrisos e esperanças do porvir, com olhos marejados de lágrimas, a sombra da verdura do arvoredo, com a lua nos batendo em cheio nos rostos, olhos fitos nos olhos, lábios colados nos lábios, os nossos corações se despediram naquele longo ADEUS, na véspera da minha debandada para terras do oeste, para vestirmos a capa universitária e cantarmos o fado nas margens do Mondego:

Coimbra é uma lição
De sonho e tradição
O lente é uma canção
E a lua a faculade
O livro é uma mulher
Só passa quem souber
E aprende-se a dizer
SAUDADE!”

Como os tempos passam e tão depressa! No entanto, na roda vertiginosa do Tempo, rodaram duas longas décadas. O velho império do oriente fabuloso desmoronou-se em peso, a face do intransigível do palácio de São Bento. Mudaram os ventos nas margens do Tejo e emanciparam-se as Áfricas. O expedicionário português, Manuel da Tropa dos Batalhões de Portugal, já casado de responder às cartas da sua namorada Maria, que por tão longo o esperou, regressou agora às províncias de Minho e Algarve para fazer o lar. Enfim, depois da longa noite polar que passámos nos cafés de Coimbra e Lisboa, levantou-se a velha cortina de “Visado pela Comissão de Censura”, mas o escudo vascilou em face da instabilidade económica, cortado o nó górdio da placenta que o nutra. E aí, os governos somaram e seguiram.

No meu solar, à beira-mar do lindo Arábico, no litoral do sul de Goa, com as suas areias finas e brancos, como o corpo desnudado dos turistas de todo o mundo que o debandaram desde a última década, em redescoberta do caminho do oriente das Índias, una levados pela ideologia da revolução de Paris, da primavera de 68, outros motivados pelo turismo ou estudo de uma civilização milenária, ainda cercado por aquela vegetação luxuriante para antro de chilreantes pássaros, o anteras e a terra que um dia foram a minha telefonia, serviram de cordas de suspensão para a roupa dos pares que, em noites de luar, anicharam nele para furtivas luas de mel, aproveitando da solidão do ambiente e da ausência do seu dono em terras de fado.
As árvores do meu lindo arvoredo de há gerações, circundando o meu vetusto solar, e que serviram de protecção aos inofensivos inquilinos temporários que aí apareceram de quando em vez, sem a carta do contrato, para hospedes de um ou outro dia, senão horas, escaparam das chacinas do machado dos algozes. Aqui e acolá, os coqueiros, as mangueiras, as jaqueiras, os pinheiros, a despeito de não terem que manjar, cresceram sem queixumes, reproduzindo-se regularmente, para mata pão de mata-bicho dos desventurados da sorte. Só a pintura das paredes, que em tempos se vestiram de gala, cedeu imenso. Mesmo assim, eles albergam ainda com toda a fidelidade que dorme agora o sono na campa fria da lousa e que, em tempos, encheu o solar com vida e alegria. Uma e outra imagem dos santos, de devoção, de marfim, relíquias do passado, distante, foi roubada do seu nicho, sagrado, provavelmente pelos homens de além-gates, sem escrúpulos, em troca de algumas centenas de rupias no mercado de Bombaim, para fazer o seu ganha-pão, sem suor, irados de acharem as antiguidades removidas, há tempo.

E enquanto cá o nosso Mandovi secou o seu leito de saudades dos que partiram, nós, já fartos das águas do Mondego e das capas negras, fechamos o nosso diploma de Coimbra nas gavetas da secretária em Lisboa, esquecidos do objectivo do nosso curso, para tomarmos um emprego na casa-forte do Banco Espírito Santo e Sotto Maior em Lisboa, para vermos o saldo na caderneta do banco em algumas centenas de contos, para partirmos para um tour pelas sete partidas do mundo, a ver se fazíamos o coração mais leve... Aonde fomos, o que vimos, o que fizemos, seria um longo rosário de histórias que as limitações do rectângulo de papel não me permitiriam por hoje.
E agora, de regresso ao meu velho solar, em romagem de saudades, com alma feita de nostalgia, com o coração repartido pelas sete partidas do mundo, recostado à minha janela virada para o sul horas sem fim, reatando o fio, recordando o que a memoria me permite desses longos vinte anos da minha ausência, com as suas lacunas, convidando-me a um exame introspectivo: são recordações que se perdem no alem. As lembranças humanas dissipam-se cada vez mais... E o mundo, elíptico e redondo como a luz que alcançamos, na sua azáfama incessante, vai-se evoluindo impassível... as emoções humanas!

Se há muito a vida não me faz sentido, ainda guardo na minha mala de mão os enormes maços das tuas cartas, já amareladas pelo tempo, enumerados por ordem cronológica, em maços de cada ano, quando, por longos anos, corria ávido à porta da minha república em Coimbra, à espera das tuas notícias que, de repente, a certa altura, se sumiram como por mistério...

Nunca mais consegui escrever-te... nunca mais pude indagar... porque em parte não tinha alma para tanto, porque em parte não tinha também o endereço da tua residência nova.. mas faço hoje a muito custo, servindo das colunas do nosso jornal, o velho ‘O Heraldo’, o único que sobrevive até hoje, a ver se tu podes ler a minha carta, além do túmulo...

Litoral do sul de Goa, 7 de Agosto de 1981

Tu amigo dos bancos do liceu,

Aires Colaço

Friday 8 July 2011

Alfredo Bragança - 18 de Junho: depois do dever do Jawan (1965)

Quero descansar em ti, ó Terra amada,
Dormir no seu teu eternamente,
Assim deixar o mundo e toda a gente,
E alcançar em ti a Paz abençoada.

Abre-me o seu seio, ó Terra sagrada,
Que eu quero que o meu corpo penitente
Vá dormir na tua urna friamente,
Repousar manso na Campa gelada.

Quando assim deixar-me acabar a vida,
Lá surgirá a minha Alma reflorida,
Comungado a Hóstia de Paz infinita...

Eis minha única prece, único anseio:
Deixa-me dormir, abre-me o teu seio,
Ó Terra minha, ó terra bendita!

Beatriz de Ataíde Lobo e Faria - Uma aposta imprudente (1966)

Oh! Que lindas flores! Hei-de enfeitar com elas o meu presépio! – exclamou Ana, ao ver, no fundo do barranco, umas mimosas flores bravas que brilhavam aos raios do sol, já em declínio, regadas pelo rumorejante rigueirinho que corria para o regato saltando de pedra em pedra.
- Que ideia! Não podes chegar-te até lá! – objectou António.
- Aposto que posso!
- Aposto que não!
- Que perdes, se eu ganhar?
- O meu colar de pérolas.
- Não quero! De que me serve o teu colar?
- Para ofereceres um dia à tua noiva.
- Se fosses tu essa noiva!?
Ao pronunciar estas palavras que traduziam o seu sonho, acalentado no intimo por muito tempo, a voz de António tremia de comoção.
Quando procurou encontrar o olhar de Ana, já ela estava descendo para o barranco.
Ao dar o segundo passo, talvez turbada pela comoção ou talvez por imperívia, o pé resvalou e Ana foi cair no fundo, aos trambolhões.
António correu em seu socorro. Ana tinha um rasgão na testa e corria-lhe pela face um fio de sangue. Tremia de susto. António lavou a ferida na água da fonte e fez o penso com o seu lenço. Enquanto Ana se sentava a refazer-se do susto, ele colheu uma porção de flores e alguns talos da relva rendilhada que atapetava as margens do rigueirinho, e depô-las no regaço de Ana.
- António, perdi a aposta – disse ela. Tu ficas com o meu colar e eu com... uma cicatriz na testa que vai enfear-me por toda a vida, para me lembrar desta imprudência.
António contemplava a airosa e grácil figura, sentada numa pedra com a relva e as flores no regaço, emoldurada pela verdura luxuriante com que se engrinaldavam as paredes do barranco. O lenço que servia de penso, já apresentava mancha de sangue. Era urgente seguir para casa. O rosto de Ana já se serenara e ela sorria embevecida, naquele ambiente de paz e frescura que a atraíra e podia ter-lhe sido fatal.
- Ana, não me respondeste...
- Queres-me ainda com este rasgão na testa?
- Pois! Se te quis antes deste incidente, agora inda mais te quero. A cicatriz que te ficar, será o castigo da nossa imprudente aposta, que podia ter um resultado fatal.
- É verdade. Iremos os dois à meia-noite para a Missa do Galo agradecer ao Menino Jesus o ter-me poupado à morte e pedir-lhe que abençoe o nosso amor. Ele será o primeiro a receber a participação.
Ana não podia subir para cima do barranco. António apoiava-a com o seu braço. Ela fizera como uma bolsa da saia e levava nela as flores.
- Parece-me que estou a fazer uma ascensão aos Céus com estas flores no regaço, guiada pelo meu anjo da guarda.
- Guiados um pelo outro poderemos fazer da nossa via uma ascensão aos Céus, levando nos braços flores muito mais valiosas – os filhos que Deus nos der.

Gonês Sinai Candearparcar - C'est la vie (1960)

Mal o comboio fez a sua paragem na estação, o Sr. Eng. Rogunath, passageiro de 1a classe, gritou por um begarim e mandou tirar a sua bagagem.
- Olhe lá: Tome cuidado com a bagagem. Aquela maleta... o termo-frasco... cesto de fruta... disse o engenheiro ao homem.
Depois de encabeçar tudo aquilo no homem, Rogunath pôs-se a andar. Ao sair da estação de caminho de ferro, viu que uma pessoa que viajara do mesmo comboio tivera uma solene recepção à sua chegada.
Rogunath passou uma vista, num instante, por toda a estação a ver se aparecera alguém a recebê-lo por parte do seu cliente, grande proprietário ou bhatcará daquela aldeia. E verificando que não aparecera ninguém, perguntou ao homem se ele sabia a casa do bhatcará da aldeia.
- Com certeza, Senhor – respondeu o begarim – toda a minha vida passei cá, conheço todos os cantos e recantos da aldeia. Vamos por estrada mais curta Senhor, sim?
- Pois, com certeza! Escolha a estrada mais curta possível, pois fazem anos e anos que perdi o hábito de andar.
Os dois puseram-se a andar. Rogunath observava tudo com muita curiosidade. E, ao espreitar a sua comoção era manifesta, o que aliás era muito natural, pois após quase 25 anos de ausência regressava ele à sua terra natal, aldeia que ainda continuava a ser uma das atrasadas do pais.
Antes de acabar a instrução primária ele tinha sido obrigado a deixar a sua terra natal para sempre, em vista de repentino falecimento do seu pai, e desde esse dia vivera na Cidade, em casa do seu tio materno, à cuja generosidade devia a sua posição social de hoje. A dizer a verdade, não fora pequeno também o seu sacrifício e força de vontade. Vencendo todas as grandes e sérias dificuldades conseguira ser um engenheiro de renome a ponto de hoje ser convidado para uma consulta técnica por um ricaço da aldeia.
Enquanto percorria a estrada, o engenheiro ia recordando o seu tempo da infância; espreitava maravilhosos cenários que, aliás, não eram novos para ele, e que por sinal algumas árvores permaneciam quase da mesma forma. Algumas casas que ladeavam a estrada estavam substituídas por outras novas, e algumas davam mostras de já terem perdido o seu aspecto novinho.
- Sabem quem é o senhor que agora foi recebido, solenemente, na estação? Pareceu-me ser uma pessoa conhecida mas não me recordo donde... sabes? – perguntou o Rogunath.
- É o novo Administrador; voltou de uma viagem, chama-se Bhagavantarau Mahamatmê.
- O que? Bahgú é hoje administrador? É admirável! Olhe que nós fomos companheiros de carteira... Sou também desta aldeia. Bhagú é muito inteligente e foi um bom estudante... E, só ele, porquê?... Todos nós fomos bons estudantes. O nosso professor gostava muito da nossa turma. Ele então dizia que nós havíamos de fazer boa figura na vida. Olhe, tínhamos mais um companheiro. Chamava-se Gondú... Sim, Gondú... Sabes onde está ele?
- Gondú?... Ah... sim. Sei quem é... É o Govindarau... Ele formou-se em engenharia.
- Ah... Sim?... Então é meu colega. Onde está ele?
- Não sei precisamente dizer onde é que ele trabalha. Mas no ano passado esteve cá. Ele tem também um irmão chamado Morú que é hoje um grande artista....
- Exactamente, é esse mesmo. Oh! Que sorte! Dizem que o meio é que faz os homens. Qual história! Não é preciso outro exemplo! Basta ver que apesar de pertencermos a esta pobre aldeia todos nós saímos bem. Sim... muito bem mesmo... Dizem também que é preciso de sorte... Nem sempre é verdade. Sorte existe no pulso de cada um. Persistência é que é preciso ter-se!
- Pode ser que assim seja – disse o homem, largando um grande suspiro.
- E sabes onde está o Gopó?
- Gopó?... Ah!... Sim, já sei.. É o senhor Gopinata Cossambê? Ele é hoje inspector da Policia aparece por cá de vez em quando...
- Ah!... Sim? Formidável...! Todos nós fomos bem recompensados. Não achas?... Mas tudo isso com força de vontade de cada um de nós. Aliás veja. Fomos pobres. Protecção faltou-nos sempre. Mas todos nós estamos bem colocados. Pena é que não posso encontrar-me com nenhum deles... Se todos eles estivessem cá... ! Sim... Mas porque é que eles hão-de ficar cá nesta aldeia solitária? Para fazer o quê?... Mas diga-me lá onde estão...
O Engenheiro não chegou a completar a sua pergunta, pois foi interrompida pelo aparecimento dum bigodeiro que cumprimentando respeitosamente o engenheiro pediu desculpas por ter chegado tarde a recebê-lo, e perguntou admirado:
Mas, Sr. Engenheiro, quem é que trouxe por este caminho tão conveniente?
- Foi este homem que me trouxe por aqui, naturalmente por este caminho ser mais curto.
- Que diabo! Fez muito mal. Ele é um idiota. O meu Bhatcará, se fica sabendo isso, zanga-se comigo de certeza. Pois, eu fui pela estrada principal e mesmo com pequena demora encontraria o Sr. Engenheiro se não tomasse este caminho.
- Mas este coitado para eu andar menos encaminhou-me por este lado – disse o Engenheiro com um sorriso franco.
- Ele? Ele não é coitado... hum!... é um grande patife! Não pode estar quieto na aldeia. É um grande sabichão com a leitura de Reader’s Digest que faz. Fazia propaganda contra o nosso Bhatcará, mas ele deu-lhe uma lição muito boa: apanhou-o numa curva e sacou-lhe tudo – disse o bigodeiro com todo o orgulho.
- Ah!... Sim?... Como foi isso?
- É que o pai dele devia ao nosso Bhatcará uma importância de mil rupias que, com juros de tantos anos, aumentara para mais de sete mil. Ora, o meu Bhatcar para acabar com a fanfarronice deste estúpido lançou mão a todas as propriedades que o gajo tinha...
- E de que vive ele agora?
- Vive destes trabalhos.
- Coitado... disse o engenheiro largando um grande suspiro, e olhando com ternura para o homem que estava um bocadinho afastado e que embora não tivesse ouvido nada, já compreendera que a conversa era a seu respeito. A sua cara manifestava um ódio pelo bigodeiro.
Momentos depois todos eles chegaram ao palácio do Bhatcará. O secretário correu imediatamente para dentro a anunciar a chegada do engenheiro. Entretanto este ficou junto da sua bagagem e reparando no homem que a trouxera para ali puxou pela carteira a fim de lhe pagar: mas nisto lembrando-se da sua pergunta interrompida, momentos antes, disse:
- Olhe lá, diga uma coisa. Já me falou de todos os meus companheiros, naturalmente conhece-os todos; não sabe, por acaso, onde está um deles que se chamava Ganú Savanta que era muito meu amigo e que sempre fora o primeiro na nossa classe? Não calcula quanto nós tabalhamos para lhe conquistar o primeiro lugar da classe. Mas nunca! Sempre o rapaz puxava notas mais elevadas do que nós. Era muito inteligência e trabalhador. As suas ideias, mesmo então, eram maduras. Creio que ele deve estar ocupado, com certeza, em algum lugar de destaque. Ouviu falar dele qualquer dia? Nunca ele voltou para esta terra? Pois não?
- Não, meu senhor, como poderia ele voltar, se nunca o desgraçado teve possibilidade de sair desta terra!?... disse o begarim comovido com os olhos rasos de lágrimas. – Sou eu mesmo desgraçado Ganú Savanta! Oh! Rogunath, agradeço-te muito pela lembrança, pois tu foste o único que se lembrou deste desgraçado e por uns momentos conduziu-me ao feliz mundo de então que era cheio de sonhos! A minha vida não pode ser nunca outra coisa senão o que se está a ver... – interrompeu o homem a sua fala por não poder prosseguir mais.
Rogunath fitava-o boquiaberto. Quis abraçá-lo.
Nisto o homem, muito comovido, comprimindo um soluço forte, virou-se para disfarçar e correu para fora sem receber a recompensa do seu trabalho.
Rogunath, que ficara uns momentos pálido e inerte, sem saber como devia proceder, murmurou: C’est la vie...

Maria Odília C.A. Battel - Carnaval (1963)

É Carnaval! E os homens sem critério,
Ocultos por detrás da Fantasia,
Tiram, enfim, a máscara que os prendia
À pureza e bom senso do que é sério.

- E a rir perdidamente o mistério,
Que nos fala de Deus e de Poesia –
Esquecem Beleza e Harmonia
Dos sonhos puros dum azul etéreo.

- E enterram suas almas sem saber
No burlesco que a farsa as faz descer
Como fantoches num abismo fundo!

- E gritam: eis chegado o Carnaval
Mas – ai de nós – é sempre Carnaval
Enquanto houver hipócritas no mundo!

Friday 1 July 2011

Norman Tertulano Lobo - Há Natal Triste (1969)

O estouro do balão trouxe-me a realidade...
Bagvanram vivia num compartimento que havia sido conzinha duma residência, que hoje tinha sido convertido num godão.
No compartimento havia ruína e miséria.
Viviam nele oito pessoas, os pais, irmãos, a mulher e filhos do Bagvanram, todos dormindo, amando e chorando, neste espaço de 12 metros quadrados.
Conhecia o filho mais novo do Bagvanram que tinha uns 3 ou 4 anos de idade.
Todos as vezes que eu passasse pela sua porta pedia-me dinheiro. Era hábito seu.
É assim que o vim a conhecer.
Era uma criança raquítica em que a fome crónica tinha vestígios no seu corpo de cabeça rapada e faces puxadas onde às vezes se suspeitava a vigorosa impetuosidade do gesto maternal, quando havia exigência demasiada para mais pão, pois o que já consumira não satisfazia o aperto da barriga.
Chamava-se Krisna.
Apesar da sua miséria, sempre sorria, um sorriso inocente e tão simpático, que me fascinava invariavelmente.
Era noite de Natal.
Eu vestido do meu melhor fato burguesmente, ia apressado, para encurtar o caminho pela casa do Bagvanram porque já era tarde para comparecer no ponto do encontro onde o Aires me esperava no seu carro, acompanhado dos camaradas Zito, Elmano, Vasquito e Chico.
Quando passava pela porta do Bagvanram ouvi e vi Krisna a chorar.
A mãe tinha-o no seu regaço e procurava consolá-lo desesperadamente.
Chamei pelo Krisna, mas este recusou-se a mover e continuou a chorar.
Perguntei à mãe a razão do choro do filho. Ela informou-me que estava doente.
Meti a mão no bolso e deitei ao Krisna a pequena e insignificante moeda que me veio à mão e perguntei, pondo-me a andar, se já tinham levado ao médico.
Não sei o que me foi respondido, pois já estavam longe da sua porta quando veio a resposta.
Ouvimos a “missa de galo” no D. Bosco.
Terminada a missa e termos distribuído profusa e hipocriticamente as Boas Festas, por todos que se abeiravam de nós, fomos para a “Noite dos Românticos”.
Aí ao som da música suave, saboreamos os deliciosos chouriços e outras iguarias terminando com a soberba “Bibinca”.
Quando a “Noite dos Românticos” terminou, já era manhã e o Sol suavemente se levantava ao nascente.
Com vapores da festa ainda a aquecer-me a voluptuosidade do meu animalismo a produzir delicias, saí do local, e ao sair arranquei um balão que estava a fazer parte da ornamentação da sala, para oferecê-lo ao Krisna.
No caminho enquanto brincava com o balão, a minha animalidade se crescia embalada pela suave brisa duma manhã fresca de Dezembro.
Quando cheguei à porta da casa do Bagvanram é que me lembrei de que o balão se destinava para Krisna.
Sem mais delongas entrei em casa do Bagvanram com o balão na mão.
No chão estava um corpo inerte de criança coberta com um pano que fora branco e hoje de cor duvidosa.
A um canto, Bagvanram e os seus familiares estavam sentados de cócoras e silenciosos.
A sua mulher chorava.
À porta vi algumas mulheres a falarem baixinho e a soltarem Ais. Nisto o balão que ficara exposto aos raios solares, estoirou-se.
Reparei que eu era a única pessoa que não estava bem no quadro pois destoava ridiculamente pelo seu modo de vestir com os restos do balão na mão.
Saí do local.
Cá fora celebrava-se o Natal alegrement.

José Barreto Miranda - Fonte de Ana (1958)

(Ana Fonte – Rica e Velha Fonte Marganense que me banhou em pequeno)

Que doce encanto e que infinita graça
Tem essa fonte, santa sem altar!
Parece velha mãe sempre a cantar
Suave, terna, ao filho se que passa.

Nívea candura por ela perpassa,
O negro mal não vai nela pairar
Dia e noite o seu canto é um rezar
Que Deus escuta e dá-lhe tanta graça.

Que bendita mãe sempre a nos palrar!
Alegre em nos ver, dá-nos a sua água
Para beber e até para lavar.

E, não tendo mais nada para dar,
Encobre, coitadinha, a sua mágoa
E põe-se mui terna a cantar, cantar...