Monday 5 September 2011

J. Soares de Almeida - O Balcão (1955)

Relíquia duma arquitectura ancestral, o balcão ainda se vê escancarado à entrada de muitas casas tanto modestas como solarengas da velha terra de Goa. Ainda em certas construções novas, onde a modernidade se mescla com a tradição, lá está o balcão amigo na planta, anexo à fechada da casa, com as suas duas colonatas de estilo anónimo, um banco de pedra com encosto, de cada lado, e entre eles um espaço bem largo onde às vezes os miúdos jogam à bola, e tendo ao fundo a porta principal que dá para o interior da casa propriamente dita. É uma feição arquitectónica que há muito se gravara na alma do povo – um desafogo tanto material como espiritual. Serve de ante-câmara onde os moços de recado esperam; de abrigo aos mendigos que na canícula do sol pedem ismola e, cansados, pedem licença para se sentarem no balcão. É um suplemente da moradia, muito útil, principalmente quando a zaragata dos garotos deita a casa para baixo: “Vão lá brincar no balcão!” – berra-lhes a mãe, brandindo a chinela. Às vezes torna-se o doce refúgio dos pescadores, com seu cigarro e jornal, quando ouve a trovoada da mulher ribombar pelos quartos por alguma infracção de matrimónio que ele cometeu e não sabe bem qual foi.

No estio ou na monção, em todos os tempos que Deus nos deu, o balcão lá está logo à porta, pronto a acolher à sombra do seu velho tecto algum membro da família que busca meditação em silêncio sob golfadas do fresco, ou então a família inteira para um ameno cavaqueio no tédio da tarde. Ir para o balcão é ao mesmo tempo não estar encafuado entre as quatro paredes da casa nem perambular pela estrada fora a gramar poeira. Aquilo é, para melhor dizer, um meio-termo nu, valha a semelhança, uma ponte de suspensão entre a casa e a rua. Botá-se lá com um olho para dentro e ver se os gaios partem a louça e o outro para fora a ver quem passa.

Dentro da casa tudo se espalha pelos quartos, pela sala de jantar, pela cozinha, mas no balcão, e pelas tardes, quer sejam de calor ou de chuva, os elementos dispersos da família se convergem como num núcleo cerrado, e até a criada lá aparece pondo a última nota de solidariedade familiar. Mas o balcão não é apenas o centro de reunião da família em peso. É qualquer coisa de mais caloroso e complexo. É o parlamento íntimo onde se trocam os pensamentos do dia, se desabafam as impressões mais recônditas e se ventilam os mais variados problemas desde o arroz que se cozinhou ao meio-dia, à icterícia que teve a D. Bantácia.

- “Aquilo é desleixo”, disse a D. Ana que, sentada no balcão, remendava os calções dos miúdos.

- “Mas é pena, mãe, uma mulher com tantos filhos e sem meios, estar assim acamada”, apiedou-se a filha.

- “Parece que ela bebia, a desavergonhada”, anotou a avó, puxando ou óculos para cima do nariz.

- “Olha, o melhor remédio para a icterícia é uma queimadela”, instruiu a avó. Todos concordaram e calaram-se; quando o avó abre a boca, é o mestre que fala.

Botava quase toda a família sentada no balcão, aonde iam espraiar-se regularmente depois do chá da tarde. D. Ana com seus pais já velhos, a sua filha,

(segue na segunda página)

os garotos e a criada. O marido, o atarefado Esperdião, ficara lá dentro remexendo nos papeis e livros: o filho mais velho fora flanar, e um outro fora ao cinema. Eram exepções.

- “Falando da icterícia” – ia a continuar a mãe da D. Ana, a velhota da D. Maria, quando a criada, prestada no degrau de balcão, com os ouvidos atentos à conversa e os olhos abertos para a rua, soltou o brado de alerta: “Aí vem a bhai Etelvina”. Todos os passos se alongaram para a direcção indicada. Repolhuda e forte, D. Etelvina avançou para o balcão, arfando como um fole.

- “Muitas boas tardes. Ai que calor lá fora. Vocês todos aqui no balcão a receberem fresco, hein?”

Boas tardes, soaram as vozes. Insuportável calor, concordaram.

- “Afinal, pensaste em nos vir ver” – disse sorrindo D. Ana.

- “Ai, minha Ana, se tu soubesses os afazeres que tive por esses dias! A minha cunhada Eustacia com a maldita icterícia, o marido transferido e os filhos a Deus dará; tive de acudir, coitada, está toda amarela”.

-“É pena realmente, disse a velha D. Maria. Conheci a Eustacia desde pequena; boa rapariga, esplêndida dona de casa.”

- “Não levaram o médico?”

- O dr. Pinto, como sempre, disse que era coisa ligeira e receitou umas poções”

- “Antes levassem o dr. Couto” aventurou-se D. Ana.

-“Eu não sei porquê, tenho mais fé no dr. Aires”, disse a filha.

-“O dr. Aires? Credo, nem me fales nele!” opôs-se a avó, a D. Maria. “Ele já está matando a mulher do regedor. A meu ver não há por aqui melhor médico do que o dr. Sousa”

-“Para essas maleitas, minha senhora, apostrofou a avó, ajeitando-se e tossindo, levem sempre o dr. Veiga; deixa a curada em dois dias”

- “O dr. Sousa curou a icterícia da D. Rita” insistiu a avó.

- “Ah, é verdade!” voltou a falar a D. Etelvina. Então não sabem que a D. Rita se separou do marido? E uma desgraça que anda a bradar por ali fora.

Ali espantaram-se as bocas.

- Mas diziam que ele era muito bom, amigo de família...

- Saía à mãe, disse a D. Maria do alto da sua experiência, ajeitando os óculos. Conheci a mãe por muitos anos; era uma grande genuda.

Alguns pares de olhos fitaram-se na D. Etelvina que remexeu o seu corpanzil no fundo da cadeira. D. Ana lembrou-se que o seu marido estava em casa e suspirou de alívio. É assunto espinhoso, pensaram, e D. Ana deu volta à conversa.

- E onde pára a sobrinha da Rita, a fafia da Amélia? Diziam que se ia casar com um oficial de diligências qualquer e de quem não me lembro o nome.

- Ah, já sei, é o tal Pereira, ajuntou a D. Etelvina. Mas ele ganha pouco e alem disso é um estroinas, amigo da pinha e um jogador inveterado. Vai ser uma infelicidade. Não sei como os pais consentiram.

- Bem feito! São orgulhosas, justificou a filha da D Ana.

Uma breve pausa pairou sobre o balcão. A brisa parecia adormecer as mentes; a tarde ia fora tinha já perdido as cintilações do sol e uma claridade parda descia sobre a terra, aumentado o coaxar das gralhas que recolhiam para a noite. D. Ana, sem perder o movimento da agulha, deu ordem à criada para meter as galinhas na capoeira e ver-se os gatos tinham mexido com as panelas. D. Maria mandou trazer os comprimidos para os seus achaques.

- “Boas tardes D. Ana, boas tardes a todos”, soou a voz da Márcia, da banda da rua.

-“Entre Márcia, entre. Há quanto tempo que a não vemos”, disse D. Ana, jubilante por ter mais uma visita e mais um membro no seu concílio.

-“Vestido novo? Lindo modelo” comentou a filha de D. Ana quando a Márcia entrou com os seus 18 anos floridos e o seu vestido novo que fazia realçar as linhas graciosas do seu jovem corpo.

-“Sim, é novo... D. Etelvina por aqui? Estão a passar uma bela tarde aqui no balcão.”

-“Sente-se, Márcia. Então, como foi o baptizado do filho da Carlota?” perguntou-lhe D. Ana, abrindo um novo rumo para a conversa.

-“Foi uma sensaboria; esperava que houvesse dança, mas nada, apenas tocaram um velho gramofone rouquenho e houve uns poucos serviços... a empada, então não se podia comer, estava dura. Pouca gente.”

-“Mas não sei que fez a Carlota com todo o dinheiro que tem!” opina D. Etelvina.

-“É agarrada, não deixa escapar um ceitil” reforçou a D. Ana.

-“Não festejar o baptizado dum filho como se deve! Oh, conde estamos nós!” zangou-se a D. Maria, lembrando-se dos tempos que já lá foram “Aqui, quando do baptizado da minha Ana, foi uma festa, mas que festa”.

-“Mais de 100 hospedes”, lembrou-se a avô com saudades, acendendo um charuto.

-“Diz a criada da Carlota que comem miseravelmente, uma míngua – e onde rola tanto dinheiro!”

-“Deus dá nozes a quem não tem dentes”, suspirou D. Ana.

-“Com herança, eu vou seguindo” levantou-se a Márcia. “A mãe está incomodada e eu não posso demorar”.

-“Que vestido tão desengraçado” disse a filha da D. Ana, seguindo a Márcia com os olhos quando a outra já se encontrava fora do alcance da voz. “A saia, então, está muito curta.”

-“É uma namoriqueira que não há outra igual”, acrescentou D. Etelvina.

-“É boa linguareira” interpelou D. Ana. “A mãe, principalmente, tem a mania de dizer mal de todas filhas e não vê a trave que tem no olho”.

Fez-se um intervalo; cessou por instantes o fio dos pensamentos e descansaram as línguas. A filha de D. Ana folheava o catálogo de modas: a velha D. Maria, com os óculos pousados na ponta do nariz, continuou o seu crochet, a D. Ana mirava as calções das miúdos a ver se restava algum entre rasgão, e o avô pigarreava de quando em quando, lento o seu jornal. O balcão emudecera-se repentinamente, mas foi apenas um instante, como a aberta traiçoeira numa noite de monção.

-“Ai vai a Rosália com o marido” rosnou a voz da D. Etelvina pelas traves do balcão.

D. Maria ajeitou os óculos e olhou para a rua, D. Ana voltou a cabeça para ver o casal, a filha esguichou o pescoço, o avô abaixou o jornal, a observar a novidade, e até a criada, a Joaquina ergueu-se sobre as calcanhares a ver se os conhecia.

-“Creio que vieram de licença para o Natal” observou D. Ana.

-“São muito orgulhosos. Fizeram algum dinheiro e andam com cara de quem todos lhe devem e ninguém lhes paga.

-“A mãe da Rosália anda por aqui quase a mendigar”

-“Desde que ela se casou com aquele engenheiro e deixou os trapos em que vivia nem se importa da pobre da mãe. Olha a atrevida, a deslavada!”

- “Semelhantes filhas que nunca tivessem nascido”, resmungou a D. Maria. Depois voltando-se para o marido: “Oh, António, era melhor que recolhesses, pois já sopra um vento frio”

-“E mais a mais que o papá está constipado” reforçou a D. Ana.

-“Eu também vou seguindo, que já está escuro”, disse a D. Etelvina levando-se e despedindo-se “Tivemos uma tarde muito agradável. Quando vou a casa da Amália, santo Deus, não a posso aturar; ela fala sempre da vida alheia; tem uma língua de palmo e meio. É uma critica horrível!”

-“Há pessoas assim”, disse a D. Ana. “Apareça mais vezes. Etelvina”. Alguns pares de olhos seguiram-na pela rua abaixo. Houve um rastro de paz, um fugidio vislumbre de silêncio.

-“Quando aquela mulher dá na língua não há meio de parar” observou a D. Maria, vendo a sombra da Etelvina apagar-se ao longe.

-“Gosta cortar na pele de todos” confirmou a D. Ana, debruçando as calções que passajara. “Não tem nada a fazer em casa a anda a palrar todo o santo dia.”

-“A D. Etelvina sempre invejou o bem alheio”, disse a filha, bocejando “Lembra-se, mãe, como ela críticos do vestido novo que usei no domingo passado, e disse-me que não enterrasse tanto em modas?”

-“Jaquina”, gritou a D. Ana “acenda as luzes e leve as cadeiras para dentro”.

O breu da noite espalhara-se pelo balcão, confundindo as coisas. O avó recolheu e mais os seus pigarros, e um a um meterem-se todos pela casa dentro. No fundo bruxoleavam as candeias, dispersava-se a família pelos quartos e pelos seus últimos afazeres do dia. O balcão ficou vazio quedou-se em profundo silêncio mergulhado nas trevas. No seu banco de pedra ficou apenas rosnando o gato da família enovelado num canto.

Foi uma tarde agradável pois não foi? Sabia-o muito bem o balcão mudo confidente daqueles desabafos íntimos daquelas confidências cochichadas em família e que ele recolhia na sua velha mudez de pedra e cal. Ali no seio daquele balcão vetusto tratou-se da icterícia da D. Eustacia, debateu-se a separação da D. Rita e o marido, a Márcia tornou-se numa namoriqueira delambida e a Rosália com o marido foram votados ao inferno pela pecado de orgulho. O balcão assistia a todos esses julgamentos passados em família na macieza das tardes. Ah e quantos julgamentos mais não soaram pelas suas velhas traves! Jazem ali encerradas confidências familiares de gerações, ruínas das pessoas que foram vitimas imbeles das conversas balcoeiras por todo aquele ror de anos, desde que um antepassado da família de grilhão de oiro e bigodes retorcidos erguem aquela casa e bradem ao mestre pedreiro: ‘´Não se esqueça de me fazer um balcão bem largo e espaçoso com bancos de pedra cimentada, onde toda a família se possa sentar”.

Fechou-se o portão da casa rangendo sobre os gansos. O balcão ficou isolado da residência aberta a rua e às carícias da noite. Uma mendiga sem eira vergada sobre uma vara tosca, farta das noites ao relento, aproximou-se de balcão deixou a vara e o alforge num canto e descansou com alívio sobre o seu banco de pedra.

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