Wednesday 1 June 2011

Maria Júlia de Sá Nogueira - Foi o meu rosário (1954)

Rente ao muro da formosa quinta, toda cercada dum laranjal em flor, parou um automóvel, donde saltou um homem fardado, que, a passos largos, se aproximou de um portão, por onde entrou, depois de abrir de par em par...

Sob o alpendre da linda vivenda estava Marta, com um cestinho de vime na mão, a deitar milho às pombas. O desconhecido, ao avistá-la, tirou o képi para alegremente acenar com ele, a chamar sobre si as atenções... Marta ao dar com os olhos nele, soltou um grito e exclamou:

- Meu filho!...

Ao pronunciar estas palavras entre todas suaves, deixou cair o cestinho, que tinha na mão, espalhando assim, pela relva, todo o milho que distribuía. As pombas, baixando o voo, vieram todas, manifestando o maior regozijo perante tão lauto banquete.

No mesmo dia, ao cair da tarde, Marta encontrava-se meio deitada num divan, tendo a seus pés, sentado numa fofa almofada, seu filho Mário. Oiçamos o enternecedor dialogo trocado entre mãe e filho:

- Recordas-te, mãe, daquela terrível birra que eu tive, por causa do meu velho professor de história? A ela, só a ela, devo o meu internato na escola... Sabes que nunca te supus capaz de tal. Se tu, mãe, cedias sempre às minhas lágrimas... Como tenho bem presente a véspera da partida!... Aquela varanda, alem estava cheio de vasos com cravos vermelhos... Pé ante pé, cheguei junto de ti, que te preparavas para regar as flores. Numa voz de choro mal contido, implorei: “Mãezinha, não me separes de ti, prefiro morrer!...” Depois, escondendo a cara no braço, fugi...

Marta, passando os dedos, ao de leve, pelo cabelo de Mário, confessou:

- Quando te vi desaparecer, filho, foi com as minhas tristes lágrimas que acabei de regar os cravos vermelhos...

Mário, com ternura, beijou repetidamente as mãos de Marta, dizendo, por fim com acentuada adoração:

- Toca a boca de mulher, que sabe, como tu, dizer “Meu filho”, pertence a quem nasceu para ser o coração, a alma, a vida desse filho... Mas, voltando a recordar o passado...

A primeira vez que foste visitar-me ao colégio, perguntaste ansiosa: “Aqui não te falta nada, pois não, meu filho? Dei ordem para tudo te darem...” Deitando-te os braços ao pescoço, respondi, olhando-te fixamente; “Nada me falta e falta-me tudo... Parece um disparate, mãezinha, mas é assim!... Não serás tu, mãe, tudo para mim? Que saudades tenho daquela hora em que vinhas aconchegar-me melhor a roupa dares-me um beijo!”

Para me consolares, abriste a mala e deste-me então o teu lindo rosário de pérolas e pedras preciosas, que o pai te mandara da Índia, e fizeste-me jurar que nunca me separaria dele. O querido rosário jamais deixou de andar junto ao meu coração... A ele devo a vida... E mais do que a vida!... O que se passou comigo e com ele, é quase um conto das mil e uma noites!... Ouve:

Quando exerci um cargo militar na Índia, o governador de Calcutá, o pai de Teresa, da minha noiva recebeu, certo dia, um aviso anónimo, prevenindo-o de que, num pagode, entre inconcebíveis velharias, costumavam reunir-se vários índios, a adorar um deus que era conhecido como a divindade dos estranguladores... O governador deu ordens imediatas para que o antigo pagode fosse reduzido a cinzas. À noite, porém, quando entrou no seu quarto de dormir, encontrou, sobre o leito, um papel preso por um punhal, com as seguintes palavras: nós, os índios, nunca olvidamos nem o bem nem o mal...

O governador não fez grande caso da encoberta ameaça. O tempo passou e tudo esqueceu...

(continua na 6a página)

Uma tarde, cheguei ao palácio do governador e não encontrei Teresa. Tinha saído a passear, no seu cavalo favorito, acompanhada por um indígena. Peguei num livro, para matar o tempo, e fui lê-lo para o escritório do governador. Mas as horas foram passando, umas após outras, e Teresa não voltava. Eu e o pai da minha noiva, alarmados com a demora, consultámos, vezes sem conta, os relógios... Por fim, um criado veio comunicar-nos que o cavalo chegara sozinho ao pátio. Nesse mesmo instante uma pedra atravessou o vidro e veio cair sobre o tapete, a meus pés. Baixei-me e apanhei-a, vendo, então, que vinha envolvida num papel, onde estava escrito o seguinte: Teresa é uma rosa de estonteante beleza... Hei de aspirar-lhe o seu delicioso perfume até ela murchar! Sem a mais leve sobra de hesitação, corri em busca do meu cavalo árabe. Quando lhe apertava a sela, um velho criado do governador veio segredar-me ao ouvido: “A menina deve ter sido roubada pelo Rajá Rathma, que era o maior defensor do deus dos estranguladores, a seita que o Senhor Governador tem encarniçadamente perseguido.

Sem querer ouvir mais, parti à desfilada... Ao chegar ao palácio do Raji Rathma, saltei para o chão e prendi a minha montada a uma árvore... Nesse momento, ouvi o piar duma ave nocturna e, a seguir, o rastejar dum réptil... Qualquer coisa sibilou no ar e... perdi os sentidos. Quando voltei a mim, achei-me com as mãos fortemente ligadas e deitado sobre fofo divan forrado de veludo azul. Encontrava-me num imenso salão todo rodeado de espelhos de cristal com luzes em profusão, espalhadas por serpentinas, de vários tamanhos e feitios, de oiro e prata cravejados de pedras preciosas, entre as quais as granadas faiscavam como brasas. Um dragão, de boca escancarada, deitava fumo pelos olhos, espalhando, por toda a sala, um perfume de sândalo e rosas...

Vi, reclinado sobre um coxim de brocado-roxo, um homem todo vestido de branco, com um turbante vermelho na cabeça, a brincar com uma pantera... Ao dar com os olhos nele, pus-me de pé e gritei, irado: “Se és Rajá Rathma, e se não és um cobarde, tira-me estas cordas e, de punhal em punho, defende-te...” Rathma, pois era ele, apontou-me à fera dizendo: Mági, Mági... A pantera logo formou um salto e veio cair sobre os meus ombros: rasgou-me

(segue na 8a pagina)

imediatamente a farda, pondo-me o peito a descoberto e patenteando assim o meu rosário com a sua cruz, cujos diamantes faiscaram como láminas de espadas. O rajá, com o olhar preso à cruz do rosário, pegou num chicote e, com o cabo onde brilhava, como um poente rubro, um enorme rubi, dominou a pantera, fazendo-a cair a seus pés. Deoius, tocando num tan tan, chamou um criado e entregou-lhe a fera... Aproximou0se, em seguida, de mim, até me tocar com um dedo no rosário, ao mesmo tempo que me perguntava: “Quem te deu?” Obedecendo não sei a que poder, respondi, já sorridente: “Minha mãe”. “E como foi esse rosário parar às mãos de tua mãe?” “Este rosário tem uma história. Meu pai salvou outrora, numa selva, a algumas léguas de Delhi, um jovem príncipe índio, atacado por um tigre raivoso; arriscou a vida para salvar um desconhecido, cuja alta categoria social lhe era indiferente. Decorridos alguns dias, recebeu, dentro dum lindo estojo de âmbar, este riquíssimo rosário, que trago comigo desde criança. Gravada na tampa do estojo, vinha a seguinte promessa: Contai sempre com a gratidão do índio Auri. O rajá Rathma, mal eu terminara o que acabo de narrar, tirou do cinto um punhal e cortou as cordas, que me ligavam as mãos, dizendo ao mesmo tempo:

“Os orientais dizem aos filhos, quando ainda são bem crianças: “Todo aquele coração que sentiu germinar, em si, a delicada flor da gratidão, e a não soube resguardar do tempo, tem o mesmo valor que um terreno árido, onde a água não corre...”

Depois, curvando-se, acrescentou: “Eu sou aquele índio que teu pai livrou das garras do tigre... Vou mandar que imediatamente te seja entregue a filha do governador... És livre senhor oficial!”

Mal disse isto, abriram-se como por enquanto, todas as portas do salão... Daí a momentos, Tereza estava nos meus braços, satisfeita por ver-me, mas sem se queixar de maus tratos, por parte dos seus raptores. No entanto, já a cavalo, a caminho de casa levando-a aconhegada a meu peito, ouvi-a dizer, a tremer como uma tolinha assustada: “Mário, foi o teu arrojo que me salvou... da morte ou da deshonra!”

Apertando a minha noiva contra o coração, ergui um olhar de infinito reconhecimento ao céu, e murmurei, roçando a minha boca pelo seu ouvido:

“Não meu amor, foi o meu rosário!”

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