Wednesday 25 May 2011

Beatriz Ataíde Lobo de Faria - Paz na Terra (1957)

Bertila estava sentada à janela, a meditar a sua vida que se esvaía num viver monótono. Era penoso constatar: ela não vivia – vegetava. Nada lhe interessava no mundo: pobres, crianças, órfãos, doentes, parentes, vizinhos...

Festas religiosas e festas cúreas, nascimentos e casamentos roçavam por ela sem originar o mais ténue frémito de alegria no seu coração apossado de tédio e indiferentismo. E inquietava-a um permanente vácuo...

A vizinha de frente saiu da casa com um rolo de esteira de bambu e um alvo lençol sobre o ombro. Estendeu ao sol a esteira e sobre ela o lençol. Cumprimentou a Berila.

- Então, que é isso? Perguntou Berila, esboçando um sorriso.

- Vou expor ao sol os mandarês. Preparativos para a consoada de Natal.

- É verdade. Já está próximo. Era de facto época de Natal. Faltavam só oito dias. Ela nem dera por tal. Era preciso preparar a consoada pois na sua terra havia o costume de trocar os presentes. Era só por isso que Bertila pensava agora na consoada. Não por ela que de tudo se aborrecia, não pela sogra achacosa e meio tonta, não pelo marido dispéptico – mas para corresponder ao brinde das vizinhas.

Festa de Natal. Na igreja haveria bodo aos pobres e crianças. Porém, a ele assistiram só os que podiam deslocar-se até lá. José, aquele rapazinho gárrulo e guapo que a poliomielite prendera à enxerga, esse não desfrutaria do prazer de comer os bolos, juntamente com os da sua idade, no adro da igreja. E enquanto os irmãozinhos, envergando factos domingueiros, corressem entusiasmados para o bodo, ele faria aborrecer à mãe com o seu choro cantarolado:

- Leva-me, mãe, eu também quero ir...

Mas a mãe não ligaria, habituada a ouvir a toada. Os seus braços doridos pelo trabalho extenuante para a manutenção de 3 crianças (uma delas entravada) já não podiam aguentar com o peso do José que ia crescendo no catre de dor...

Raiou o dia de Natal.

Bertila, saindo do seu torpor moral, preparara a consoada e mandara uma boa parte para o José.

O carro que chamara, para ir dar as boas-festas à mãe velhinha, já estava à porta quando crianças em bandos, passaram chilreando quais passarinhos, de caminho à igreja. E logo ouviu-se o choramingas do José:

- Leva-me, mãezinha, eu quero ir também!...

Porém, ao contrário, do que sucedia em outros dias, a mãe também se lamentava, em voz alta e chorosa:

- Ai que triste sorte a minha! Se o teu pai vivesse poderia levar-te ao colo, meu querido filho, mas eu não posso!

- Leva-me de carro, mãe!

- Santo Deus! Os carros não foram feitos para passeios de pobres como nós!

Bertila não soube o que se passara dentro do seu peito. Os seus ouvidos só ouviam o eco das últimas palavras do José: leva-me de carro, mãe! Um eco que se repetia estridente, implacável, a martelar-lhe os ouvidos.

No seu guarda-roupa estava o fato que ela comprara há dois dias para oferecê-lo ao José. Mas lembrara-se do cheiro desagradável daquela enxerga onde o rapaz jazia noite e dia e pensara que o fato podia ter melhor aplicação.

Mas aquele eco!... Não era bem o eco da voz meiga do pequeno. Era uma voz ameaçadora que parecia sair de cada móvel do seu quarto: Leva-o de carro!

Bertila saiu do seu palacete e entrou no casebre do José. Dirigiu-se à mãe e disse: Vamos levar o pequeno.

E como ela a olhasse espantada, explicou, mostrando o fato que levara: Vou levá-lo de carro para o bodo.

Bem levado e vestido, José dirigiu-se para o carro nos braços da mãe.

A alegria que se estampou no seu rosto pálido quando viu as crianças aglomeradas em redor da Árvore de Natal, o olhar extasiado com que contemplou o Presépio na Igreja, foram de grande compensação para o gesto de Bertila. E enquanto a mãe do José, ajoelhada aos pés do Menino Jesus, agradecida à sua benfeitora, pedia para ela bênçãos celestes, lágrimas de alegria desciam pelas faces de Bertila, desfazendo o seu egoísmo e comunicando-lhe a alegria de viver, inundando, ao mesmo tempo, o seu coração duma suave paz – aquela doce paz que Jesus prometeu na terra.

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