Sunday 25 December 2011

Walfrido Antão - Flores Campestres Review (1968)

Alberto Menezes Rodrigues que me honra com sua amizade há anos acaba de me oferecer com uma amável dedicatória seu último livro de contos e que leva o sugestivo título de Flor Campestre. Li-os. Gostei. Tornei a ler e nas suas páginas ainda húmidas do prelo e da imprimissão como diria Jaime Rangel fui encontrar Goa Velha, a antiga capital do Reino dos Kadamba. O ar, o clima dos contos, e telúrico, igual às raízes, ao varzedo verde, à graça fresca e louçã das suas raparigas e mulheres que enfeitam os mercados de Pangim e Margão com o refolho das suas saias de chita e “choli” que revela mais do que esconde.

Quem conhece Goa Velha sabe que esse pequeno rincão da alma goesa tem a genealógica aristocrática de velhos proprietários Menezes, um dos quais deixou pelo seu amor à agricultura um importante tratado sobre a “Arte Palmarica”. Um Plácido Menezes se não me engano que no contexto da nossa economia deixou uma tradição e novos métodos. É assim a terra, a posição geográfica onde se movem os personagens dos contos de Flor Campestre. Alberto Menezes Rodrigues é essencialmente um poeta de sentido lírico como se referiu o crítico literário do jornal O Século de Lisboa ao apreciar seu li

ro de poemas. Rico de imaginação, o autor de Flor Campestre foi buscar ao povo seus personagens. O “conflito” ou seja o “drama” dos contos de Alberto Menezes Rodrigues não tem no entanto a dimensão do “moderno”, “realista”. Falta-lhe a economia das palavras. Vai longe no pormenor e no detalhe. Não deixa ao leitor a margem da “escolha” de ele ser um dos personagens. Como um poeta que é, arranca os personagens à sua fantasia. Vejamos por exemplo o conto “Flor Campestre”. O personagem principal ou o herói é um médico recém formado, que se apaixona por uma Mariana que vinha buscar água ao seu poço. Ela era filha do povo que nunca podia sonhar com um doutor e Alberto Menezes Rodrigues aproveita desta situação para nos dar uma imagem rósea e optimista da vida ‘tout est bien que finit bien”. Depois do “moruoni”, esta passagem “Aproximando-se da noiva ainda mais, e em cujos lábios de rosa, bailava um lindo sorriso de graça e de sonho, e poisando as duas mãos sobre o ombro dela Daniel do Rego depôs na fronte ebúrnea um beijo puríssimo de amor.”

Sejam quais forem as nossas ideias sobre a literatura e muito embora nos custe compremeter o sentido existencial da literatura que papa hóstias de má catadura pouco entendem, convém reconhecer que Alberto Menezes Rodrigues tem contribuído imenso para alargar a dimensão de literatura em Goa. Ele traz influências profundas dos românticos, Júlio Diniz em especial. Até a escolha dos nomes das personagens, como Daniel, parece obedecer a esse comando instintivo. Que Alberto Menezes Rodrigues continue a criar.

Visnum Porobo Sincró - Canavial

Naquele extenso bambual cor de esmeralda
Ocupando o sopé da coluna ondulante
Arequeiras que ficam no fundo do vale
Com toldos de cachos amarelecidos,
Branda aragem murmurando sempre,
Aves trinando encantadores gorgeios,
A cogul anunciadora da Primavera,
De vez em quando soltando sons melífluos,
Os viandantes que se aproximam
Dão graças ao Omnipotente Criador,
Os aborrecidos da faina cotidiana
Esquecem num momento as agruras
No canavial sempre verdejante.

Jubileu de Evágrio Jorge (1975)

Passa amanhã, o jubileu de oiro do diário concani Uzvadd, motivo por iniciativa de uma comissão constituída para o efeito, haverá uma sessão de homenagem sob a presidência do sr Tito Menezes, Comissário Judicial, no Clube Nacional, às 18:30 horas.

Nascido em 6 de Março de 1925 em Carmona, feitos os estudos primários na sua aldeia, matriculou-se no Liceu tendo estudado até o 6o ano.

Atraído desde muito novo para o jornalismo, trabalhou como assistente do Editor, adv. Amadeu Prazeres da Costa em “O Heraldo” e mais tarde no “Diário de Goa”. Editou também em Bombaim o quinzenário concani ‘Azad Goem’, de que foi editor em chefe o finado Tristão de Bragança Cunha, “Pai do Nacionalismo Goês.”

Envolvido no movimento da libertação de Goa desde o início, ofereceu satyagraha em Cuncolim em 7 de Novembro de 1946 e foi condenado a mês e meio de prisão, cumprindo a pena na cadeia de Quepém.

Preso de novo em 15 de Agosto de 1946, foi encarcerado na fortaleza de Aguada, julgado pelo Tribunal Militar e condenado a 5 anos de prisão rigorosa, sendo porém posto em liberdade em 1950, graças a amnistia concedida pelo Ano Santo.

Perseguido pela Polícia, passou para Bombaim, onde depois de trabalhar no quinzenário “Azad Goem”, serviu na secção concani dos Serviços Externos da All-India Rádio, em Nova-Delhi, de onde, depois da libertação de Goa, passou para a estação de Bombaim e finalmente para a de Pangim.

Tendo começado a escrever aos 14 anos, publicou os seguintes folhetos: “Santos ou Arruaceiros” sobre as conversões forçados, “Salazar’s rule over Portugal and the Goa case”, “Salazar ani Goem” etc.

Colaborou largamente em “O Heraldo” e outros jornais e publicou no “Navhind Times” uma série de artigos sobre filhos ilustres de Goa. É desde 1970 editor do diário concani Uzvadd.

Tomou a iniciativa da celebração do centenário da morte de Francisco Luís Gomes, sendo secretário da sua comissão e foi ultimamente eleito presidente da comissão de recepção da 3a. Conferência de Escritores Concanis.

Por esta faustosa data apresentamos ao sr. Evágrio Jorge as nossas calorosas felicitações com votos sinceros por longos anos de vida felizes e prósperos.

Jeanette - Uma Família Goesa (1957)

- O quer que lhe diga, Mann Zé! Reprovaram a Lena!

- Reprovaram? Mas como? Se já estava tudo tratado? Então julga que minto? Pergunta, aliás, à Beatriz, se não tratámos do assunto durante o jantar que “lhe” oferecemos! Essa é que está boa. Então jantou – só em vinhos setenta e cinco rupias!... E...

- Setenta e cinco?! Como? Se paguei setenta e cinco rupias e sete tangas?

- Promete-te Maria! Não pus na conta mais do que gastei. Não me lembrava das tangas. Mas não é isto o que interessa! Então fiz as despesas e...

- “Fiz as despesas”?! Pois eu é que paguei todas as contas e nem sequer comi o jantar! E a Lena reprovou! Que tempos estes! Então, a Lena, reprovaram, sem a mínima consideração por ti, pelas famílias de quem descendemos! E deixaram passar o filho do nosso carroceiro! Estás a ver para onde caminha o mundo?! Estás a ver?!

E a Dona Maria bateu o pé com tanta força na lage de cimento do balcão do seu Mano José – Mann Zé – que a camurça gasta do calçado cedeu e o tacão dobrou-se todo, provocando uma entorce que arrancou um “Jesus” da garganta da, já naquelas alturas, apopléctica Dona Maria. Esqueci-me de lhes descrever o pormenor “panorâmico” do balcão do Mann Zé – tão de chofre começou a conversa que a Dona Maria não deixou tempo para “observações” prévias. Imaginam, no entanto, um homem de estatura mediana com um leque de palmas ao lado, os dedos ocupados em desobstruir um cachimbo meio carcomido, sentado numa cadeira de lona de que não se sabia bem a cor com os pés por cima de um banquinho enquanto os chinelos descansavam até não serem chamados a cobrir os calos do venerando “herdeiro” das “tradições da família” – foi como o Zé estavas antes do tacão da Dona Maria curvar-se sob o peso da indignação que motivara o tacto do filho do carroceiro ter passado os exames! O balcão tinha uma só parede na qual se abria uma porta que dava para um corredor. Duas colunas, dois prismas rectangulares sustentavam-no nos extremos e dois poios de cimento e madeira fingiam, de cada lado, uma meia parede. Distava da estrada, que passava rente, os dez degraus que só galgando-os se podia subir. Foi por eles que a Dona Maria entrou ostentando um chapéu de sol de enormes dimensões – um “sombreiro” como lhe chamam – que de maneira nenhuma podiam tranquilizar um homem como o Zé, sofrendo de gota – reumatismo – designação airosa e aristocrática dos males que dificultam talqualmente a gota, o movimento livre das pernas. Vieram as “crioulas” quando convocados pelo aflito Mann Zé, que quando viu a mana baquear como a tirania, assustou-se e deixou cair o cachimbo – qual bicho, amigo da sissiparidade, que prontamente se fez em dois (não cachimbos, mas pedaços). Fizeram o curativo que consistiu em embeber trapos velhos em água de sal morna e aplicá-los na região dorida. A segunda fase, seria untar o tornozelo de óleo de coco.

- Patifes! – rosnou a Dona Maria fazendo um certo esforço para dominar a dor que a angustiava. O Mann Zé, ao lado, continuava impassível a desobstruir o cachimbo partido com seriedade e persistência dignas de servirem de exemplo aos que andam em tarefas similares no Canal de Suez

- Patifes! – rosnou outra vez a Dona Maria e desta, o poial vibrou, ao menos ao Mano assim pareceu. Perante tanta fúria pensou o pobre “paciente” de gota que era preciso agir já que reagir não poderia, com as pernas tão trôpegas. E se bem pensou melhor o fez.

Sopesou, lastimoso, os dois fragmentos do cachimbo e monologou:

- Era do meu avó! Depois foi meu pai! E agora.. é o que é... E admiram-se que já não respeitem as tradições.

Laxmanrao Sardessai - Bonança (1965)

Lá fora sopra a procela.
Chove a cântaros,
Ululam as águas,
E os elementos da natureza,
Entram em jogo macabro.
A trovoada intercalada de raios
Sacode a terra imersa em trevas.
Árvores são arremessadas
Como folhas leves,
Estorcendo-se em movimentos
De fantasmas hediondos!
E o mundo parece rolar
Para o abismo do infinito
Mas, ó minha amada, tu estás
Firme e serena no teu posto
E um sorriso da bonança
Baila nos teus lábios!
E que nos teus olhos
Vejo refletida a imagem da Bíblia.

Friday 9 December 2011

Laxmanrao Sardessai - Eu Canto Quando os Outros Choram (1965)


Eu canto quando os outros choram,
Eu canto quando vejo o infeliz,
Ainda em flor da idade,
De membros gangrenados,
De mãos e pés roídos,
Desforme e desolado,
Prostrado à borda da estrada,
Implorando  compaixão divina
E um olhar terno do transeunte
Então, eu canto e a minha canção
Envolve, num abraço estreito,
O desesperado leproso
Que chora, acordando em mim
O belo e o sublime
E vibrando as cordas da minha alma
Que reboa pelos vales e montes
Comunicando a todos os entes
A inefável dor daquele condenado!
Eu canto, quando vejo,
A infinita tortura da mãe,
Enferma e esquálida
A quem acaba de ser arrebatado
Pelo destino, o seu único filho,
Novo e forte, único esteio
Da mulher invalida.
E a minha canção, qual vento ligeiro
Sob nos ares, em todas as direcções,
Levando o bálsamo a todas as mães infelizes
Que choram a perda prematura e repentina
Dos filhos dilectos...
Eu canto, quando a cega epidemia
Ceifa as vidas, ainda em botão,
Quando o camponês, louco e desesperado,
Ergue as suas preces para o Céu
Pedindo à providência gotas de água pura
Para o seu terreno crastado
E a minha canção passa como um relâmpago
Pelos povoados e cidades
Despertando para o seu infortúnio
Os corações afortunados
E sacudindo a letargia dos insensíveis
Que acodem aos desgraçados
Com óbolos e dadivas.
Sim, eu canto, quando a miséria
Impera, reduzindo os entes humanos
A farrapos que o vento arroja
No seu redemoinho...
Eu canto, quando a maldade humana
Se empenha, encarniçada,
Em apagar a luz da alegria
Que ilumina os inocentes e os ingénuos
E, então, a minha canção troveja,
Rebomba... açoita...
Com a veemência da procela,
E, num relance de olhos,
Uma hoste poderosa,
De corações magnânimos
Emerge da escuridão
E avança, qual exército vitorioso,
Levando-lhe conforto e esperança,
E, punindo os malfeitores.
Eu canto quando os bons
E os inocentes choram,
E a minha suave canção
Enxuga-lhes as lágrimas
E os cobre duma armadura
Invulnerável
Eu canto, por que choro a dor dos que choram...
E também choro de êxtase
Quando vejo a corrente,
Pura e cristalina do Ganga
Veemente e tumultuosa aqui,
Serena e majestosa, acolá,
Mas, sempre magnânima e farta,
Fertilizando com a sua limfa criadora,
Campos e florestas,
Alimentando homens e animais
E semeando bênções?
E canto, em fim, quando vejo,
De longe, muito longe, os Himalayas,
Firmes e erectos, quais rishis,
Confundindo-se com as nuvens,
E derramando das suas neves eternas,
Correntes abençoadas, quais Buda e Cristo
Que derramaram dos seus corações
Correntes de amor
Que levaram para redenção
Almas infinitas!

Tuesday 6 December 2011

RV Pandit - Cada Gota do Teu Sangue (1968)

Os inimigos
Da liberdade
Disparam
Contra o teu coração?
Para te tirar a vida?

Faz do teu coração
Um escudo
Sê doido
E avança
Pela liberdade.

As balas
Entram
No teu corpo?

Ai! Meu irmão
Não faças caso
Avança
Até cair
Pela Liberdade!

Jorra teu sangue
Pela terra?
Ai! Meu Deus.
Não importa
Avança sempre
Até a morte
Pela liberdade.

Cada gota do teu sangue...
Pela terra esparzida
Pedira
O sangue
Das gerações
Que virão atrás...

Pedirá sempre
Por séculos
Vigilante
No caminho
Da Liberdade

Cada gota
Do teu sangue
Trará brilho...
A bandeira, tricolor
Brilhará
No caminho
Da liberdade

E pedirá
Gotas do teu sangue,
Quente,
A terra
Os rios... de lágrimas
As flores
Te comemorarão
Por séculos
No caminho
Da liberdade.

Faz do teu peito
Um escudo
E avança
No caminho
Da liberdade
Pela liberdade!

Thursday 10 November 2011

Maria Juliana Monteiro e Cordeiro - Noite de Insónia (1963)

Ó Lua!
Luar de meia-noite!
Porque me espreitas,
Assim matreira,
Bisbilhoteira,
No conchego sem par
Do meu doce lar?
Não sabes, por certo,
Que o teu olhar indiscreto
Até me tira a cor
No terno alento
Do beijo quente
Do meu Amor?
Tem mais dó
Do pobre viandante
Que pela noite adiante
Saiu da casa, só,
Por obrigação,
Sem uma lanterna, coitado!
Vai iluminar,
Por favor,
O jardim dos namorados
Para andarem acautelados
Com a febre da sua idade...
A mim, não, querida!
Se passei em dura lida
As horas do sol,
De cá para lá,
Sem um momento parar!
Ó lua de prata,
Tapa-me pelo menos
Esses olhos de marota
Com o negro véu
Da nuvem perdida,
Vagabunda, esquecida,
Do oceano do céu.
Vai-te embora,
Importuno luar
Que a esta hora
Eu quero repousar
Das fadigas do dia
Na doce companhia
Do escuro da noite
Onde me sabe melhor,
Muito melhor,
O conchego do meu Amor...

Laxmanrao Sardessai - Quem Sou (1966)

Sou quem conhece tudo
E ignora nada
Em mim estão fundidos
O Presente e o Passado
Numa massa única
Feita de milénios,
Que o homem viveu,
Através de mil gerações,
E represento também o Futuro
Que se prolonga na Eternidade
Sou Deus feito homem
Para dar à Humanidade
A seiva do amor divino.

Monday 7 November 2011

Alberto de Menezes Rodrigues - Cantores Alados (1965)

Certo dia, acordei de manhã cedo,
E fiquei, no meu leito, a escutar
Um lindo, harmonioso gorjear
De pássaros poisados no arvoredo.

Pouco depois me levantei, e ledo
Uma janela abri de par em par,
Para melhor no quarto penetrar
O canto divinal do passaredo.

Reparei logo, que se destecava
Dos moruonis a vibração maviosa
E enternecidamente eu a escutava.

Mas uma gralha, num gesto brutal,
Metendo a sua voz rude e fanhosa,
Transtornou o concerto matinal

Augusto do Rosário Rodrigues - Xavier (1960)

Em verso sonoro, eu canto-vos a glória,
Em ardente prece, eu rendo-vos o preito,
Um canto cristão, de emoções puras feito,
Tecendo-vos palmas à santa memória!

Vós sois lembrado com honra na História
Como herói da Cruz, a virtudes afeito!
Com o mesmo orgulho, trazemos no peito,
Vossa Santidade – toda luz e glória...!

Alma lirial, mística, santa e pura,
Aspirando à Eterna Mansão de Ventura,
Sofre assaz martírios e derrama o Bem...

Nasce na opulência. Mas larga a grandeza...
Quer só Virtude, Abnegação, Pureza...

Leonor Rangel-Ribeiro - Como a Vida é Bela (1966)

Poeta
- de todos os climas –
Branco, castanho, amarelo
Ou negro como a noite sem estrela!
Sou tua irmã.
Vem, põe-te à janela
Do Universo!
Escuta, como a Vida é bela,
Toda ela feita d’harmonias,
De contrastes:
À Mentira ressalta a Verdade,
À Dor o Amor,
Em vertiginosa melodia,
A caminho da Eternidade.

Nascimento Mendonça - Cântico em Louvor da Monção (1966)

O vento vai pelo palmar passando
Com voz de mando e o seu clarim de guerra,
Dobram-se os robles e sorriem sonhando
Que os rios do céu jorram sobre a terra.

O lodo é como pedra faiscando
E lume e lava todo o areal encerra...
Ah! Vento de monção, vai clangorando,
Vai ululando pelo mar e a serra.

Dir-se ia que és a voz de uma desgraça,
Ara do mal que sobre o mundo esvoaça,
Voz de Tigre que os berços sobressalta.

E contudo, meu Deus! É a tua fala
Que na leiva e árida a semente embala,
No pó hostil a vida imensa exalta.

Judit Beatriz de Souza - Dois Poemas (1953)

Judit Beatriz de Souza é uma jovem poetisa da terra goesa que se nos afigura com largos recursos poéticos.

Questão, apenas de continuar a observar a vida no que ela encerra de essencial e a estudar a sociedade no que ela tem de dinâmico e de contraditório e, sempre e cada vez mais, lendo os grandes poetas portugueses, com especial atenção talvez, para os modernos, que uma tão larga contribuição de valores humanos e estético e souberam angariar para a poesia dos nossos dias.

Judith é muito jovem mas no seu lirismo há já, por vezes, um sopro vigoroso que nos garante estarmos em presença de um temperamento poético, que se abre rico de promessas.

Ficha Biográfica

21 de idade. Natural de Pangim. Empregada nos CTT. Habilitada com o Curso do Magistério Primário.

Não tem qualquer livro publicado. Tem um de poemas pronto a entrar no prelo. Publicou versos no Heraldo, Ala, Boletim da Emissora de Goa e o poema “Gôndola de Sonho”, foi transcrito pelo Dr. Mourão Correia no livro que ele publicou: “Qual o destino da língua portuguesa na Índia?”

“Em Dó Maior”

É maio agora.
São poemas de luz as madrugadas,
O Sol ao despontar
É coral esmaltado de oiro fino.
Há sonho nas corolas perfumadas
E seiva borbulhando nas remadas
E em ti, nas tuas veias dilatadas
Há Vida e Mocidade
Toda florida de ilusões e de esperança!

Na tua idade
O coração palpita mais depressa
E cada pulsação
É um anseio, um sonho... um promessa...

Vai colher esses látegos de estrelas
Que fulgem com o brilho peregrino
Na via triunfal do teu destino!

Não temas, vai. O mundo é pequenino
E tu – tu és ainda uma criança
De alma plena de sol e confiança!

Mas... o Sol que desponta radioso
Ao fim de um dia,
Se esconde amargurado e langoroso
E a rosa que floriu de madrugada
Logo ao sol-pôr,
Perdendo a cor,
Se inclina para a terra desfolhada!
Vês? Tudo acaba, tudo passa e foge
Ao fim de um dia
E se resume apenas a um HOJE
Que é preciso viver intensamente
Num acorde vibrante em Dó Maior!
Não te demores, vai. É Maio ardente
Florindo poesia
Irradiando amor!...

Se a Vida é tua, vai já, que perdê-la
Bem pode a mão de Deus e desfazê-la
Num instante subtil do pensamento...
Vê bem que o dia de hoje é hoje só,
Faz dele um verso claro, belo e forte
Porque afinal a Vida é um momento!

“Caminhos Diferentes”

Pelos caminhos da Vida
Eu vou andando
Sem Norte,
Sem farol,
Sem um guia...
A mim própria me faço companhia
Agora que vou sozinha...
Porque houve Alguém mais forte
Que te arrancou dos meus braços
Quando,
Com as almas plenas de sol,
Caminhávamos sinhando...
Teus passos aos meus passos

E agora vou só... sozinha
- Coração sobre mágoas a boiar –
Como aquele que caminha
Porque tem de caminhar!

Saturday 5 November 2011

José Rangel - Sob o Signo da Calma (1961)

“... por fatalidade deste signo do escritor que nos obriga a fertilizar a obra que edificamos com a seiva amarga do nosso próprio sofrimento” – Joaquim Paços d’Arcos.

Não creio que, por esses últimos tempos, livro algum tenha despertado tão grande interesse e entusiasmo entre nós, mormente na academia, como O Signo da Ira de Orlando da Costa.

Nas minhas andanças pela capital, em encontros fugidios e em demoradas conversas, aparte um ou outro comento enraivecido ou enojado à volta da “Grande Porca” de Bordalo, tivo ensejo de o ver debatido, em díspares comentário, mas todos a uma, de acordo num ponto: sentiram mais amor à sua terra, por terem entrado em mais íntimo contacto com ela...

Se os sentidos se inflamaram ante o descritivo colorido do aspecto, digamos material do homem e os corações se condoeram com o duro circunstâncias que enquadra e movimenta as personagens, tornando agro o seu viver, a isso se sobrepôs, na admiração pela obra, o sortilégio do perfeito recorte de figuras de carne e osso, plenas de intensidade emocional e riqueza humana, sofre um fundo paisagístico pletórico de cor e de verdade, enternecendo-os até o âmago do seu ser...

Antes de entrarmos de analisar, pela rama embora, a estrutura do romance, adentro das coordenadas em que se move, falemos um pedaço do autor, sem receio de incorrermos em erro, tomando para base, além duns ligeiros apontamentos pessoais, no próprio romance e o meio que o condiciona.

Moço ainda, com 18 anos apenas, deixa a sua terra, numa idade em que impera a emoção, e o espírito, pouco analítico, propende para generalizações de casos isolados que álacre ou dolorosamente o vincaram, levando na retina fundamental, um estado de coisas algo degradante.

No espírito medularmente lírico (já revelado em obra poética marcante), e por conseguinte altamente vibrátil e ressoante a todas as gradações do sentimento, sazonado pela experiência vivida e trabalhado pela cultura, essa reminência do passado se retesa e se corporiza, entra-lhe no sangue e nos nervos, toma-lhe o coração e o cérebro, em suma, se faz vivência.

Esboça-se nele um “monólogo interior”, sem o qual não há obra de arte que valha, e elabora-se a urdidura romanesca, em que a falta duma observação directa e perspicaz da realidade, a milhentas léguas da vista mas não do espírito é suprida pela intuição.

E ele o põe no papel (tinha que o pôr para evitar a frustração), levado, a cima de tudo, pela sua vocação de escritor (já manifestada), que só realizando desmistificadamente a sua missão de homem e de artista, plenamente se realiza.

“Transfigurar em beleza a própria miséria, a própria desgraça, a própria descrença, é afirmar uma crença do destino da alegria, uma esperança de vitória (...) O artista é um humilde instrumento a realizar um valor que o supera. Porque a Arte é do homem: do que cria e do que espera por essa criação”, escreveu o grande romancista Virgílio Ferreira.

Vamos agora ao romance.

O romance, para ser apreciado na sua verdadeira contextura, é mister encará-lo à luz dum critério que englobe todos os aspectos que constituem a sua trama: “o encadeamento da efabulação, a descrição dos cenários sociais ou da natureza, a doutrina, a própria linguagem, o predomínio da razão ou do sentimento” (Cruz Malpique) tendo o critico (para Sainte-Beuve, todo o leitor é um critico) de se colocar numa atitude de vigilante equanimidade e receptividade.

Como já se frisou, O Signo da Ira entronca no Neo-Realismo que, alargando e modificando as perspectivas humanas e sociais rasgadas pelo Realismo que Eça definira como “larga e poderosa Arte, fazendo um profundo e subtil inquérito a toda a sociedade e a toda a vida contemporânea”, cria uma nova estética que bebe a seiva de inesgotável riqueza, do húmus local, em que tem as raízes, mas clarificada e depurada pelo filtro do humano, na sua dimensão psicológico-social.

“Uma nova consciência se impôs” - escreve Armando Bacelar em “Vértice” – “um sentido de descoberta do humano nas realidades nacionais e regionais (...) porque a preocupação da cor local e da descrição dos particularismos regionais se sobrepõe um acentuado amor do humano, numa tentativa absorvente de extracção do resíduo universal e do sentido vivo das relações e dos quadros.”

Sem queremos entrar no cerne do romance, para lhe fazer uma real critica judicativa, a que nos falta competência, e que já se fez, em artigos lúcidos e brilhantes, não podemos negar, sem sermos estreitos de critério, que O Signo da Ira é uma obra que possui valência artística e humana.

Técnica romanesca bem cuidada, em que o autor, tendo insuflado vida às suas personagens com hálito próprio, erguidas com um forte poder evocador e de penetração psicológica, intencionalmente se apaga, para se meter na vida deles, com os seus instintos e sentimentos, reacções e conflitos, numa harmoniosa unidade de acção, sem intromissões forçadas e de doutrina que lhe quebrem o ritmo e o natural e lógico desenvolvimento, servida por um estilo vivo e cálido, justamente moldável à “situação”, enriquecida de uma pujante vegetação de imagens, no geral felizes, nas quais o homem, e a Natureza, dada em soberbas pinceladas, se articulam e se fundem, tudo integrado num “clima” fundamentalmente poético com laivos de dramatismo

(continua na 6a página)

No tocante a cenários sociais, já frisámos como é que Orlando da Costa forjou a textura do seu romance, mais pela intuitiva, pois na idade cronológica e mental em que a semente peneirou não lhe teria sido possível mergulhar no problema para o abarcar na totalidade.

Se se critica, e com razão, que à “nova estética” se sobrepõe, por vezes, a “nova mística social”, conferindo ao romance neo-realista um carácter panfletário e roubando-lhe o conteúdo humano, temos para nós, após leitura do livro, que o autor quis consciencializar não uma tese em si (criando o soi disante “romance de educação”) mas a sua atitude de espírito, duramente temperado, frente ao homem, engrenado numa estrutura social, para ele incompatível social, para ele incompatível para a sua dignificação como ser individual social.

Analizando o contexto social do romance, escreve o Dr. João Gaspar Simões, um dos mais brilhantes críticos literários da actualidade portuguesa: “”O Signo da Ira” é, assim, um romance neo-realista no sentido mais rigoroso da expressão, embora sem falsas interpretações doutrinárias da luta de classes, mas sujeição ao atavismo das castas e à fatalidade das secas, um romance, neo-realista como se nos antolha o neo-realismo quando praticado da sua estrita doutrina de escola humanista ou de ampla compreensão das desgraças sociais.”

Se é necessário que o romancistas não evada do que o rondeia, a fim da sua obra ter a crédibilité como queria Bourget, para ela ser “uma coisa viva, um pedaço de carne palpitante arrancado ao corpo da realidade”, será ela pobre de fôlego e permanência, se for apenas mera pastiche da vida real.

Pois, a verdadeira arte romanesca consiste na transposição literária ou melhor na recriação, que é filha da imaginação e da sensibilidade, sendo a verosimilhança literária muito diferente da realidade em si.

“O romancista” – di-lo Joaquim Paço d’Arcos – “do mundo real leva, para o seu reminiscência das figuras que viu, dos seres que conheceu, das coisas com que lidou. Mas não as aproveita integralmente. Esmaga essas figuras, dilui esses seres, destrói essas coisas. Umas e outras comprime e amalgama, num esforço de trituração mental.”

Com essas lembranças de vultos que passaram, de lágrimas que tombaram, de vidas ou objectos perdidos, de pequenos nadas e de grandes coisas, de momentos banalíssimos e de horas altíssimas – com tudo isso romancista forma o barro donde em seguida, arranca novas figuras, por seu cérebro e suas mãos desenhadas, ergue novos cenários e cria novos sentimentos. E nessas figuras nada há, das que a sua observação fixou para que depois o cérebro as triturasse e ao vil barro as reduzisse. Nada há, porque não reproduzem uma única das figuras anteriormente enxergadas; e tudo há, porque foram erguidas com a carne e o sangue, os sentimentos e as baixezas destas, tal como do húmus igual do solo nasce a flor ou o canto disforme.”

E Fernando Namora assevera: “A verdade da literatura nada tem que ver com a veracidade dos acontecimentos, tal como a vida os forjou. A vida troça da coerência – mas nem por isso consegue impedir-nos que, ao recriá-la, lhe imponhamos uma disciplina.”

Por outro lado, nunca me seduziu transcrever fielmente a realidade. A realidade deve ser apenas uma sugestão. Daí em diante, quanto mais nos afastamos dela, maior será o nosso poder de autenticidade”

E Adolfo Casais Monteiro escreve:

“Os romancistas não são “exemplos”; só o homem inteiramente destituído de senso artístico e de “amor” de arte lê romances para saber como se deve comportar – ou até para saber como comportou o autor. Nem se deve buscar na sua leitura o “retrato” da sociedade. Talvez aquele que tenha lido todos os romances que jamais se escreveram tenha o direito de supor e só de supor, que ficou a conhecer a sociedade universal como um todo. Não, cada romance é uma “amostra”, não é padrão. Não é uma lição, é uma tentativa de penetrar no segredo do homem, de comunicar um dos muitos sentidos em que a vida e as coisas se nos podem manifestar.”

Três notáveis e profundos depoimentos, em longa citação, para esclarecer o problema, de criação literária.

E, para finalizar esses ligeiros considerações que nos acodem ao bico da pena, e que só agora trazemos dados os nossos afazeres do dia-a-dia cheio, abordemos, ao de leve, o problema do realismo, com atitude pictórica, de ex- (continua na 5a página) pressão físico-material do homem.

Um escritor pornográfico é aquele que descreve cruamente a realidade, demorando-se especificadamente no aspecto sexual, apenas com a finalidade de “especular com o vício.”

São os romances fotográficos do sórdido bas-fond, mesquinhas na intenção, tessitura e implicação humana, animados de um sopro de erotismo e animalidade, que em pocket-books andam espalhados aos milhares neste mundo.

O realismo tem outra intenção: transpor a realidade, na sua expressão psico-social, para o plano da criação literária, sem lhe desvirtuar o verdadeiro sentido: o homem tem de ser encarado, não apenas no seu aspecto religioso, nem somente como “Homem Político” de Aristóteles nem “Homem Económico” de Karl Marx, nem “Super Homem” de Nietzsche, mas como “Homem de Carne e Osso” de Unamuno.

Pergunta-se: poder-se-á criar uma arte real que apenas se cifre no aspecto psicológico e sociológico e esqueça o material?

Responde por nós, com a sua alta autoridade de romancista consagrado...[missing] zão; na prática, porém, exigem do romancista uma visão universal acautelada por tantos filtros mortais, que terminam por dar razão aos estetas.”

E depois de afirmar que não é possível evitar a “impureza irremediável” em “arte tão profana” como é a do romance, cuja matéria é “toda a massa humana”, cita os ossos de Bernanos que, da descrição “da diabólica Mouchette”, e de Graham Greene, ao descrever “a hipersexuada Sara”, não conseguiram “apresentar o mal sem o mostrar”.

E remata:

“O Pe. João Mendes, ao julgar possível o aprofundamento do mal sem descrição exterior, mantém-se na esfera dos princípios e fala da “empresa como tal.”

Mas eu, que me encontro na triste esfera, da coisa concreta a executar, atrevo-me a pensar que a “empresa como tal”, é, mais, uma vez, aquele “óptimo possível de que se ri o razoável existente”, como eu disse há tempo a universitários de Coimbra. E assim caímos, concretamente na tal “impureza irremediável” de toda a arte profana (...)

Perante esta conclusão prática, o romancista católico de duas uma: ou escreve o que tem para escrever por confiar na sua consciência e na misericórdia do seu Deus ou desconfia da consciência e portanto da misericórdia, e, doente de escrúpulo, deixa de escrever, pura e simplesmente, repetindo a renúncia de Racine. No século XVII, o facto podia não parecer grave; mas agora, quando todos procuram reparar as desastrosas consequências da demissão dos cristãos no plano do social, haverá ainda alguns que, por amor aos princípios, não queiram ver as tristes consequências práticas que resultariam de igual demissão no plano da literatura?”

Muito mais haveria a dizer do romance O Signo da Ira, se quiséssemos trazer à luz da análise muita sombra que paira agoirenta sobre o destino dos comparsas do romance.

Incontestavelmente, Orlando da Costa, senhor duma vigorosa voz e altivamente firme na estrada que trilha, desenvolve vertical e horizontalmente um problema de feição tipicamente local, mas com os olhos sem fronteira, enriquecendo o património cultural goês, feito mais de academismo e de conformismo intelectual (salvo honrosas excepções), com o poema em prosa do “canto comum”, que com os seus claros-escuros, ficará a pesar como o sinal dos tempos...

Remígio Botelho - 15 de Agosto (1966)

Um luar de prata
Se retrata
E sorri
No Mandovi…
Luar e enchentes
E de soledade;
Luar das gentes a perseguir
A quimera do Porvir;
Seguindo,
Pelo azul infindo,
O Destino, a Fatalidade.

Um luar de prata,
No Mandovi...
E por sobre a espuma
Que se desarruma
Ao embate da monção,
Eu te enxergo, visão!
Visão de ti, trigueira,
Estendendo-se da cordilheira
Do Himalaya
À velha praia
De Cormorim;
Visão sem par
E sem fim,
Como o grande mar...

Vai alta a noite...
E o açoite
Do vendaval
Reboa no palmeiral...
Noite chuvosa,
Tempestuosa;
E ela,
Pela noite fria,
Desafia
A procela!
Desafia a sonhar
E a pensar
Nos dias doutrora
Na aurora
Da Civilização!
É a recordação
Dos tempos idos,
Quando príncipes destemidos
Vinham de terras várias
Por rotas milenárias
Em busca de riqueza,
Da sua beleza,
Beleza arisca,
De odalisca...

E ela a sonhar...
E a pensar
No presente
Quando o sangue ardente
De Liberdade
Lhe corre nas veias...
Quando as peias
De iniquidade
Se rebentam, uma a uma;
E a bruma
De ignorância
E superstição,
Se derrete na ânsia
Da nova Redenção!

E ela a sonhar...
E a pensar
No dia distante,
Quando enfim triunfante
Na labuta
E na luta
Contra o Mal e a Dor,
Levará por toda a parte,
O mui nobre estandarte
De Paz e Amor...
É o desejo
Que eu vejo
No teu rosto,
Ó terra amada!
À luz magoada
Do luar de Agosto.

Ó luar de Agosto, luar de Amor,
O teu pranto incolor
Descendo em chuva fria
Que alumia
O palmar
E mais o mar;
Teu pranto silente
Que me traz à mente
Os meus versos
Dispersos
Ao longo dos anos
E desenganos;
Quando der o sinal
Da hora final
Da minha vida,
Me traga também
A visão querida
Da minha Terra-Mãe!
Visão que eu vi
A sobre-nadar
Ao luar
No Mandovi...

Saturday 29 October 2011

Agostinho Fernandes - Até breve, Goa (1982)

O autor do artigo que se vai ler é sr. dr. Agostinho Fernandes, médico goês, hoje radicado nas Caldas da Rainha. É autor de um romance intitulado Bodki, com capa de Anita Estibeiro, publicado em Lisboa. É o segundo romance adulto goês (o primeiro é, como se sabe, Signo da Ira de Orlando da Costa), ambientado em Goa, numa região sertaneja, onde exercia a profissão de médico e em que dominava a figura de mau agoiro de uma viúva hindu de cabeça rapada)

Após um dia particularmente laborioso e fatigante estava a descansar o espírito por uns momentos olhando distraído para o pequeno escran do televisor. Entre dois programas, a Rádio-Televisão Portuguesa mimoseou-nos com uma canção, já antiga, mas bela, na voz de Rui Mascarenhas:

Oh, minha terra

Onde eu nasci,

Quantas saudades

Eu tenho de ti

E foi naquele preciso instante que tudo começou: uma imensa saudade, em ondas sucessivas, apoderou-se dos confins mais recônditos da minha alma, uma lágrima furtiva brotou no canto do olho e um soluço, em no, estrangulou-me a garganta... Sim, bruscamente, que saudades eu senti da minha querida Goa e dos entes queridos e dos amigos que lá deixei... Seguiu-se uma noite semeada de horríveis pesadelos como que expiação de tenebrosas culpas e, ao acordar, tinha já a decisão tomada: sigo para Goa o mais depressa possível! A minha habitual agência de viagens informou-me que havia um voo para Bombaim, via Frankfurt, ainda esta semana e que poderia estar em Goa já na próxima sexta-feira.

É o que vou fazer. Em poucos dias estarei contigo, Goa querida. Não vou de vez, não! Ainda não!... Mas prometo estar lá muito tempo, um mês inteiro, pois tenho muitas saudades para matar, muita vida para reviver... Não vou só, levo a família toda, a mulher e os filhos, para te verem mais uma vez, para te quererem, para te amarem...

Pois é, Goa, dentro em pouco estarei lá...

Gostaria de chegar encoberto ainda pelas brumas do alvorecer para ninguém me ver chorar ao abraçar a minha mãezinha, os meus irmãos e sobrinhos, os meus velhos e queridos amigos e neles, Goa inteira, naquele abraço sufocante, feito de amor e saudade...

Gostaria de chegar bem de madrugada para, do alto de Dabolim, ver o sol raiar lá pelas bandas dos Gates efusivamente saudado pelo desconcertado chilrear da passarada...

Pois é Goa, dentro em pouco estarei lá...

Quero rever os cantos e os recantos da minha casa onde, num gatinhar desenfreado primeiro e depois num andar trémulo e indeciso, fui tomando contacto com a imensidão do mundo que me era ofertado na palma da mão ainda insegura, logo ao balbuciar as primeiras palavras...

Quero mostrar ao meu rebento mais novo a goiabeira gigante, mesmo ao lado da casa, sobre a qual por horas infindas me pendurava saboreando o delicioso agridoce das goiabas mais além onde, no topo, colocava a comprida haste de bambu impregnada de visco de jaca para apanhar os periquitos mais incautos, e ainda, o coqueiro mais alto lá do sítio, quase a tocar o céu, que eu um dia subi, até à copa, em temerária aposta com um amiguinho meu e que me valeu um exemplar correctivo da parte do meu pai, que Deus tem. Que saudades...

Ao outro filho meu, ainda mais traquinas que eu com igual idade, o tal que também herdou o vício de pesca quero mostrar o sítios secretos do rio, até hoje ciosamente guardados, a curva mais fechada, o fundo mais acidentado, onde o peixe é mais abundante, mais graúdo e quiçá mais saboroso... Que saudades, Goa, que saudades...

Pois é verdade, dentro em pouco estarei lá... Tenho muito que rever...

Quero saltitar por Goa inteira, de Tiracol a Galgibaga, de Castle-Rock até a costa de Malabar...

Quero visitar as ruínas da minha escola primária, onde a velha profissora Adelaide me ensinou as primeiras letras e os primeiros algarismos à custa de muitas palmatoadas e puxões de orelhas... Sim, tembém disso tenho saudades...

Quero visitar, subindo demoradamente a escadaria monumental do antigo Liceu Afonso de Albuquerque, onde os queridos mestres passaram tormentos sem fim nas nossas mãos, vítimas favoritas das nossas mãos, vítimas favoritas das nossas rudes brincadeiras, tão estouvadas que nos éramos...

Quero visitar o edifício da gloriosa Escola Médica, momumento vivo de antanho, onde, a par de alguma ciência, na altura bem pouca ainda, nos enriquecemos de amor pelo próximo e de profundo respeito pelos que sofrem...

Tenho muito que fazer, Goa... Mas tenho tempo, um mês inteiro...

Acompanhado do meu primogénito, o buço a romper-lhe já pelo rosto semeado de borbulhas, quero rodopiar nas festas de AVC ou quejandas, ao som das ternas melodias da “Rádio Serenaders” ou , já em trejeito de fim de baile, o sol a querer entrar à força pelas janelas dos Clubes Nacional e Vasco da Gama, ouvir extasiado o mágico violino do Johnson acompanhado do veludo da sua lânguida voz a murmurar quase em prece: “au revoir... j’attendrai... cette nuit...”

Tenho muitas saudades para matar...

Em loucas correrias quero caminhar pelas escaldantes areias da praias de Calangute, Baga, Colvá, Betul, Agondá, Palolém, quero banhar-me vezes sem conta na láctea espuma das tépidas e salsas águas, quero dormir sob a copiosa sombra dos coqueiros, docemente embalado pelas brisas, e sonhar...

Quero percorrer de ponta a ponta os bazares de Margão, Pangim, Mapuçá, regatear com as peixeiras, discutir sem razão com os vendedores de bugigangas...

Em dia de festa, quero saborear um “ambott tic” de cação como só a minha mãe sabe fazer, um “chacuti” de cabrito com não há no mundo outro igual, meu Deus, como sinto a água crescer-me na boca – e, para rematar, arroz com caril de cavalas a cheirar a olorosas “teofollamm”... Uma talhada de papaia bem madurinha e ainda uma boa fatia de bebinca de sete folhas que ficara, metade no prato, por comer por o estômago já não aguentar mais.. Por fim um cálice de “fenim” de caju para “tudo digerir”, como diria o meu impedido quando andei na tropa... Será que ainda se come em Goa? Que diabo, e festa e um dia não são dias.

Mas há mais coisas que tenho de fazer em Goa...

Está próximo o Setembro e as suas bucólicas alegrias... Quero ouvir os cânticos das ceifeiras em ondulantes searas, louras espigas de arroz a amontoarem-se nas eiras, os altos montículos de palha na paisagem...

E depois, quando a faina estiver terminada, o “bate” a bom recanto nos celeiros, quero assistir, uma vez só, ah, isso sim! A terrível fúria dos elementos da natureza, os ventos ululantes a fustigarem a escura noite de breu, os relâmpagos a riscarem os céus em compridas e tortuosas serpentes, os trovões a ecoarem por montes e vales, grossos cordões de chuva a despejarem-se ininterruptamente do firmamento esburacado... As terríveis “chuvas da terra”, como sempre as temi, como sempre as adorei!...

E ao entardecer, em religioso silêncio, quero deleitar-me em contemplar o sol no ocaso, o oceano a arder aos poucos, todo fogo liquido, dum amarelo alanjarado, com laivos de sangue.

E, à noite, em Pangim, de braço dado a minha mulher, o luar a desfazer-se em poalha doirada nas águas do Mandovi, quero passear pelo Campal, quase em romagem de saudade, rememorando as recordações das inesquecíveis serenadas, contando-lhe o desfazer dos inconsequentes namoros, frutos imaturos de turbulenta adolescência, as juras nunca compridas, os sonhos, jamais realizados...

Pois é, Goa, a minha vida não é mais que um rosário de recordações...

Sim, quero ainda ver novamente o cais de Mormugão, aquele tirano, onde, uma vintena de anos atrás me vi, de repente, quase sem dar por isso, encostado a murada do navio “Índia”, os olhos a turvarem-se de lágrimas e, o barco a distanciar-se dos lenços a dizerem adeus, dos coqueiros a abanarem os longos braços a terra a desaparecer numa nuvem esbatida e, à nossa frente, impiedoso, o negro oceano a raptar-nos para a Europa distante...

Fomos em busca de novos horizontes, para conhecer novos mundos e novas gentes, mas a saudade... conseguiu vingar, cresceu, agigantou-se... e, por isso, em breve estarei lá!

Então, Goa querida, até sexta-feira, se Deus quiser...

António Colaço - Apreciação de Mariano Gracias (1965)

O doce poeta da Saudade, da esperança e do Amor, Mariano Gracias, com o seu lirismo insinuante e cândido, deixou algumas produções que bem merecem um sucinto estudo, adentro da orientação a que, em boa hora, se subordinam os programas desta Emissora. No domínio da poesia subjectiva, com o seu verso correntio e fácil, enriquecendo às vezes de fortes tintas orientais, próprias de um artista que bebeu a sua inspiração no ardente “Súrya” tropical, o poeta goês, vivendo entre a saudade da Índia e a saudade de Portugal, numa alternância em que o subjuga, porém, a sua vincada ancestralidade oriental, produziu uma obra decerto irregular e desconexa, mas sempre animada daquela sinceridade e pathos que são a característica da verdadeira poesia.

De um físico impressionante e aristocrático, o rosto coroado por uma grenha densa e exuberante e rematado por amplas barbas grisalhas (é assim que o vi, um dia, fugazmente, num dos seus ‘regressos ao lar’), a poesia estava-lha no corpo e na alma e a sua obra denuncia bem que se tratava, realmente de alguém que (como ele diz) “sonhara” que sonho a vida se resume! No Jardim das Musas goesas, não pretendeu reivindicar um canteiro privilegiado. Contentou-se com uma álea humilde, que regou carinhosamente com o seu sorriso, a sua doçura, a sua dor. No post scriptum do seu livro “O Crespúsculo da Saudade”, escrevia modestamente:

“Quando eu morrer, que mão piedosa vá pôr sobre o meu raso coval apenas uma cruz, de bronze ou ferro, - símbolo da fé cristã em que hei vivido e conto acabar – atravessada por um raio, símbolo da vida, que, na sua rápida passagem, fosse escrevendo nela esta profunda palavra – “Nihil”. E, no sopé da cruz, estas quatro linhas, seguidas do meu obscuro nome:

Aqui dorme quem, em suma,
Sempre amou o Belo e o Bem,
Quem jamais foi cousa alguma,
Nunca passou de ninguém

Um eco distante do celebre Cinis, Pulvis et Nihil de D. Custódio de Pinho. Ponto de encontro (espontâneo!) entre os que seguem, cada um à sua maneira, a linha do Espírito. A atitude poética de Mariano Gracias (e de tantos outros poetas) é, de um modo geral, a mesma que a da Santa de Lisieux: a da Infância Espiritual. Os mesmos olhos ingénuos e claros, abertos a tudo quanto há de mais belo e nobre na vida, candura, inocência, abandono. Claro que o confronto acaba aí. Seria ousado pretender transferir para o ambiente humilde do Poeta os transcendentes e arrojados voos da Florzinha do Carmelo. “Sou criança também!...”, dizia timidamente o nosso poeta, se bem que, obtectivando logo a distancia que separa a infância real da infância de espírito, tivesse de confessar, um dia, soluçando:

Que é dessa infância perfumada e leve
Desse mocidade de rubro sal loiro?
Que é do passado, que foi que ele teve?
Que é da quimera que se evolou breve?
Que é dessa luz, desse sol, desse oiro?!


Vivendo como um forcado entre o estreito âmbito de uma... repartição pública (a grilheta de tantas poetas!) e um lar feliz, inundado de poesia – “a felicidade suprema e encantadora do meu pequenino lar abençoado de Deus”, dizia o poeta, referindo-se à família – a sua existência decorria naturalmente no mesmo ramerrão de amarguras e de alegrias que o dos restantes mortais, mas transfigurada em perene sonho pela sua alma de Poeta. É nesse lar que, num encantamento, ele pôde beber a inspiração para esta poesia de um lirismo enternecedor e simples:

Canção do Berço

A minha mulher, para adormecer Wanda 

Água da fonte que canta, 
Água do mar que murmura,
É ter mão nessa garganta
Que fale com mais brandura,

Folha de árvore que treme,
Ave que pia no ninho,
Roda da nora que geme,
Mais baixinho... mais baixinho.

Nuvem que no espaço corre,
Asa que passa no ar,
Água da rocha que escorre,
Devagar... mais devagar.

Onda que suspira e rola
Ave que vai de caminho,
Fumo do lar que se evola
Devagar... devagarinho.

Moinho que cantas e giras,
Mosca que fazes zumbido,
Vento agreste que suspiras,
Cessai com vosso ruído.

Pomba que estás no telhado,
Folha que rolas no chão,
Tende cautela, cuidado,
Não faças barulho, não!

Carro que chias na estrada,
Eco que vem desse vale,
Deixai-a dormir coitada
Que passou a noite mal.

Voa mais longe, andorinha,
Não ma venhas despertar,
Anda muito doentinha,
Deixa-a dormir, descansar.

Ai que está muito doente
A minha rica menina!
Ai de quem é inocente!
Ai de quem é pequenina!

Dorme, dorme, filha q’rida,
Que o dormir a dor acalma,
Ó vida da minha vida!
Ó alma da minha alma!
Coração, não batas tanto, 
Não batas, tem dela dó,
Dorme, filha, meu encanto,
Dorme, dorme, amor, o’, o’...”

Os dois primeiros versos desta última quadra são, como se vê, uma interessante trouvaille...

Como é sabido, o Poeta levava sempre na alma a doce luz da Crença, bruxoleante às vezes, mas logo intensa, e vemo-lo um dia cantando, num dos seus “regressos ao lar”, na cidade (ou vila) de Margão, onde nescera:

“É neste monte que a Virgem mora,
Na ermida branca, branca de luz,
P’ra cá vinha eu rezar outrora...
Com fé igual eu venho, Senhora,
Dar-Te a minha alma, mãe de Jesus!
Ó minha irmã! Que tardes amenas
Quando íamos juntos com a nossa mãe
Levar-Lhe flores para as novenas,
Pedir-Lhe alivio p’ra as nossas penas!
- Magoas e dores quem os não tem?!

Quando eu um dia deixei meu lar,
Ao pé do monte em que ora estou,
Em longes terras e sobre o mar
Aquele doce e bendito olhar
Em toda a parte me acompanhou...”

Claro que o Poeta – cumpre notar – nos poderia oferecer, do seu vasto e rico Cancioneiro, braçadas de flores de um colorido dessemelhante e variegado desde “O amor não se explica”:

(“Porque te amo... Sei lá, eu?
Acaso sabes tu, filha,
Porque se ama o azul do céu
E o clarão dos sol que brilha?)

Até esta quadra risonha e maliciosa, dir-se-ia cantada ao desafio:

Quem canta seu mal espanta,
Diz o popular ditado;
Mas quando aquele que canta
Não canta desafinado...

Como consta de “A Bíblia do amor”, Fialho comentando amavelmente o poemeto “Regresso ao Lar”, escrevia a Mariano Gracias: “As estrofes são lindas, o veio poético fácil, a emoção profunda e comunicativa, a forma a mais não cantante e vaporosa...” O furibundo critico amainava perante a doçura e a brandura de um Poeta perdido no seu ideal e no seu sonho.

Onde, porém, Mariano Gracias parece ter atingido a plena maturidade da sua vis poética, embora perdendo-se em extravagâncias devaneios e em exuberâncias de colorido, é no opúsculo “Terra de Rajás”, em que pinta a nossa encantadora Terra-Mater como que num deslumbramento, e do qual o próprio Poeta diz com carinho: “Não sei se este é o melhor livro; mas é o mais querido”.

Depois de registar este cândido desabafo num cartão de parabéns”

A Malaquite e o Corall 
A João de Vilhena

“no dia do seu noivado oferecendo-lhe um par de botões de malaquite e coral”

Lisboa, 7/IX/1918

Diz do mais pais a lenda
Que o malaquite e o coral
Andam em rija contenda
Contra o azar e contra o mal

São talismãs de ventura
Amuletos de fortuna,
Mas quando alguém porventura,
Por um fio de oiro os una,

São símbolos de bonança,
Antídoto contra o mal;
Malaquite: verde-esperança,
Cor de alegria o coral!

Eis pois a razão da prenda,
- Bem pobre, mas singular –
Sou índio, creio na lenda
- Seja feliz o teu lar/”

... vai logo o Poeta, em sucessivos arroubos, até às estrofes candentes da “Oração ao Surya” ou da “Ilha Encantada” (onde, por entre delírios de imaginação e exageros picturais, encontramos versos tão límpidos e perfeitos como estes: “Que linda noite de luar florido – Qual virgem a noivar de lírio ao peito! – Luar de opala em leite diluído – Um luar de diamante liquefeito!”), ou até às estâncias mais equilibradas do “Génio da Raça” ou da “Sundorém”, para amainar logo no transposição, em verso fluído e cantante, de “As três lendas indianas” e na recomposição poética de uma outra velha lenda, a que dá o título de “Metempsicose”, tão justamente louvada, no seu valioso estudo critico da Literatura Indo-Portuguesa, pelo Rev. Filinto Cristo Dias.

A um goês fala, evidentemente, mais de perto este mimoso soneto que, a despeito de certos desvios ou licenças poéticas, exalta em nós o verdadeiro amor filial à Terra-Mater, que tão perto devia estar sempre do nosso coração:

Goa
(O Goa, céu d’amores 
Veneza oriental!
Canais por entre as flores,
Palhetas de mil cores,
No murmuro cristal! – Tomás Ribeiro)

Dezembro. Manhã linda e gloriosa!
Sob a bênção do sol, a Natureza,
Comovida e ridente, canta e reza
A velha prece ardente e misteriosa!...

Passam terrais, em onda harmoniosa,
Espalhando perfumes!... Há beleza,
Frescura, encanto, em toda a redondeza,
A grande paz sagrada e religiosa!...

Toda perfume é um encanto a Goa!
Florida, de mil lótus a lagoa
É uma linda noiva engrinaldada!

Terra de rajás, moiras encantadas,
Diamantes, rubis, pérolas, esmeraldas!...
- Eis a ditosa Pátria minha amada!

Eduardo de Sousa - Saudades (1979)

I

É um quadro vivaz de natureza
Ver a seara viçosa quão ardente
Flutuando sob a brisa corrente
Cheia de calor e tanta beleza.

Mote

Em Candolim o Sol-Poente
Bola de fogo em brasa acesa
À minha alma diz comovente
É um quadro vivaz de natureza

II

Contemplada aquela grandeza
Tomo rumo pelo nascente
Para contrastar aquela viveza
Ver a seara viçosa quão ardente

III

Extasiado, medito na estranheza
E nas agruras do presente
Miro a Bandeira Portuguesa
Flutuando sob a brisa corrente

IV

Lembro-me de Goa florescente
Dos dias em que esta princesa
Tinha vida tão diferente
Cheia de calor e tanta beleza.

Telo de Mascarenhas - Crónica de Viagem (1978)

Sempre que víamos o barco de carreira de Bombaim atracado ao cais da Alfândega, um imenso anseio enchia o nosso peito de aventura pelas Sete Partidas do Mundo, sulcando sete rios e sete mares; de percorrer os cinco Continentes (que os ingleses alargaram para seis, partindo a América em duas, talvez para dar maior dimensão aos seus domínios, quando eram senhores da Terra e do Mar, onde o Sol nunca se punha).

Uma bela manhã de princípios de Janeiro, ligeiramente friorenta, tirámo-nos de cuidados para dar realidade ao nosso anseio e metemo-nos num daqueles Leviathans de cabotagem (à cautela, porque hoje em dia os desastres de avião frequentes, não se sabe se por os Jumbos estarem a pedir repouso nalguma estancia de sucatas ou por mãos criminosas e vingativas, com fins políticos, esconderem bombas no seu bojo, como quem esconde mata-ratos na cave).

Mal largou as amarras, o Konkan Shakti, pesadão e negro como um albatroz, foi descendo o rio abaixo, com a cidade desbobinando-se com as suas imagens policrómicas de caleidoscópio e, na outra margem, com os perfis de fortes aparatosas, meio desmantelados e inúteis eriçados de guaritas e ameias negros e soturnos como se ainda sentissem mouro na costa – fortes que estão a pedir camartelo demolidor para que deles não fique pedra sobre pedra e memória sinistra de prisões políticas, para arejar e alindar esta terra outrora tão cobiçada pelos soldados de aventura e pelos buscadores de fortuna; mas sempre bela, sempre verde e sempre procurada pelos turistas que vão de cá desiludidos por falta de alojamento condignos a condizer com a beleza paisagística, as praias encantadoras e os monumentos artísticos. Goa, hoje em dia, abunda em hippies seminus, esfarrapados, escanzelados, entregues ao tráfico de estupefacientes, com o que unicamente evidenciam o seu desprezo pela Nossa Terra e pela Nossa Gente, coisa que, de certo, na sua própria terra não lhes é permitido. Mas os nossos governantes, seduzidos pelo brilho das divisas estrangeiras, fecham os olhos à realidade e deixam que eles conspurquem e intoxiquem a nossa juventude e as nossas belezas naturais.

Viajar com a mulher e a bagagem (ambas femininas), coisa incómoda, por elas demandarem cuidados e atenções. Não há nada mais cómodo como viajar só com uma malinha de mão, com a qual se pode ir, comodamente, até o fim do mundo e, com um pouco de boa vontade, até para o outro mundo.

O sol doira o mar e o horizonte no ocaso, e a noite tropical desce bruscamente para envolver a terra e o mar no seu manto de veludo negro. Vem a lua de prata e a poalha de estrelas. Só os faróis, de longe em longe, piscam seu olho faiscante de Ciclope para avivar a navegação do perigo à proa. Às 20:30 passa, emproado e garboso, todo salpicado de clarões de luz, soltando mugidos roucos atroadores da sirene, o irmão gémeo do nosso – o Konkan Sevak.

As sete de manhã já se avista Bombaim, ainda sonolenta e embrulhada no seu xaile de neblina parda. O sol já acima do horizonte é como um muhur de oiro remirando-se nas águas paradas e glaucas da baía, qual Narciso para atrair “as sereias, que no fundo do mar, dançam sobre as areias” na velha canção da nossa infância. O bruhaha das horas do desembarque. Os passageiros pressurosos em chegar ao seu destino. Assalto aos táxis e a exigência dos bagageiros, que amenizam o tom à aproximação do policia, para condescender: “de o que estiver na vontade do freguês.” O táxi tem de abrir passagem à força de buzinadelas, por entre a multidão de gente grulhante que peja as ruas. Apesar de o Congresso estar dividido nunca se viu tanto Gandhi-cap, em manhãs como esta, nas ruas circundantes ao cais.

Bombaim, terra de exílio tão nossa conhecida, onde andamos empenhados, durante anos, na luta fecunda e apaixonante, empunhando o facho ardente e triunfante de “Ressurge, Goa!” Bombaim, que cresceu verticalmente, com os arranha-céus, como uma floresta de cimento, parecendo querer topetar o céu. A arquitectura vitoriana cedeu o passo aos multi-storeys modernos de Bacbay e Cuffe Parade.

Chegámos, enfim, ao cabo do nosso roteiro Goa-Bombaim – dois esteios do defunto Império Colonial Português no Oriente. Goa sob a durindana implacável de Albuquerque o Terríbil e Bombaim que já no século 17 deixou de ser portuguesa por o rei D. João IV a ter dado em dote a sua filha D. Catarina de Bragança ao casá-la com Carlos 2o, da Inglaterra e onde um Garcia, curioso das plantas, medicinais da Índia, tinha uma quinta, pelo que ficou sendo conhecido entre os seus amigos íntimos (que fazem sempre melhor cama), pela alcunha “O da Orta.” Aquele Garcia da Orta ganhou fama com o seu livro do ‘Colóquios sobre Simples e Drogas e Plantas Medicinais da Índia.”

Já em terra firme, libertos do espaço acanhado da cabina e da estreiteza da tolda onde os ‘passos perdidos’ não podiam estender-se muito, ocorreu-nos à memória a quadra do “Pescador de Pérolas” do drama ‘Sundorem’, do elenco do Grupo Teatral:

Mar alto, mar alto, mar alto,

Mais alto que eu sulco de escaler;

Mais vale andar no mar alto,

Do que sujeito ao capricho de mulher.

As frequentes evasões de Goa para Bombaim ou Nova Delhi concorrem para nos mergulhar no banho de civilização e para rejuvenescer o nosso espírito, proporcionando-nos o ensejo de assistir a diversas manifestações intelectuais, tais como a inauguração de exposições de manuscritos preciosos e livros raros, organizada pela Asiatic Society of Bombay, no Durbar Hal do majestoso Town Hall, exposições de arte (pintura e escultura), conferências científico e literárias, dramas e bailados, e a excursão pelo inextricável “Filmland” e, em especial, o magnífico “Planetárium”, maravilha da ciência moderna de perscrutar os astros de que os próprios Aryabhata, Copérnico e Galileu se orgulhariam: os grandes comícios do Shivaji Park, que não se realizaram devido às rivalidades internas do próprio partido no poder, para gáudio de indígena e das facções do Congresso, e para amargurar a vida politica do Primeiro-Ministro, Morarji Desai, em contraste com as grandes manifestações publicas que foram acolhidos na Índia, Carter and Callaghan.

The Asiatic Society of Bombay foi fundada em Novembro de 1804, com o fim de promover o conhecimento, em particular, dos trabalhos literários respeitantes à Índia. Ela é sucessora da Asiatic Society de Calcatá, fundada em 1784, por William Hastings, e da qual foi Presidente William Jones, orientalista eminente que revelou ao mundo ocidental o drama Shakuntala, de Kalidasa que mereceu a Schopenhauer entusiásticos louvores. Tivemos o ensejo de admirar naquela exposição não só velhos e preciosos manuscritos indianos, em Devanagri, árabe, persa e urdu, mas também edições impressas dos Vedantas e Puranas, o Bhagavad Purana, traduzido para o francês pelo insigne orientalista e filosofo Eugène Barnouf e o Bhagavadgita, igualmente traduzido para o francês pelo sanscritólogo Émile Burnouf. Os originais clássicos franceses, Les Fleurs du Mal, de Baudelaire e obras de Voltaire e Rousseau; Sylvain Levy, com Le Théatre Indien, que, segundo o seu autor “a originalidade da Índia é expressa inteiramente na sua arte dramática que os seus dogmas, as suas doutrinas, os seus mitos e as suas lendas”; obras de François Rabelais e Rochefoucauld; a Correspondência de George Sand e Alfred Musset e Pierre Loti representado como o “L’Inde sans les Anglais.”

Uma noite ofereceu-se-nos o ensejo de percorrer, numa corrida rápida, a longa e sinuosa avenida de Chowpatty – o Marine Drive – que marginava a grande baía orlando de enfiada de luzes multicores reflectindo nas águas como um colar principesco de pedras preciosas, de caminho ao Catholic Gymkana, onde em Dezembro de 1948, aquando do nosso primeiro regresso do exílio voluntário em Portugal, assistimos pela primeira vez (com assombro misto de escândalo) ao Baile do Fim do Ano, e em 1974, à recepção do Dr. Mário Soares. É uma das muitas reminiscências que afloraram ao nosso espírito – pois, o que é a vida se não uma enfiada de contas que desafiamos com saudade para “recordar e viver?”

Os nossos afazeres em Goa forçam-nos a encurtar as férias e cortar cerce o fio da nossa digressão pelo mundo colorido e ultramoderno, com os seus inevitáveis contrastes, que é Bombaim.

Na noite anterior, os ventos rijos e o mar picado tinham provocado a demora, na manhã seguinte, do barco que nos devia trazer de torna-viagem para Goa. Porém o Konkan Sewak que largara de Bombaim com hora e meia de atraso, brioso como era, com marchas forçadas recuperou o tempo perdido e manhã cedo do dia seguinte avistámos terra de Goa, que reconhecemos, mercê das suas praias brancas, os edifícios alvejando por entre o denso palmeiral e a silhueta do negredado Forte da Aguada, a ponta do Cabo com o seu palácio banco poisado um pombal e a foz do Zuari coalhada de barcos cargueiros, que trazem contrabando e levam a maior riqueza que Goa possui, que é o seu minério.

Mergulhámos, novamente, na pasmaceira de Goa, unicamente amenizada pelos trabalhos que nos assoberbam, intelectuais e culturais.

Friday 21 October 2011

Augusto do Rosário Rodrigues - Xavier (1960)


Em verso sonoro, eu canto-vos a glória,
Em ardente prece, eu rendo-vos o preito,
Um canto cristão, de emoções puras feito,
Tecendo-vos palmas à santa memória!

Vós sois lembrado com honra na História
Como herói da Cruz, a virtudes afeito!
Com o mesmo orgulho, trazemos no peito,
Vossa Santidade – toda luz e glória...!

Alma lirial, mística, santa e pura,
Aspirando à Eterna Mansão de Ventura,
Sofre assaz martírios e derrama o Bem...

Nasce na opulência. Mas larga a grandeza...
Quer só Virtude, Abnegação, Pureza...

Laxmanrao Sardessai - Eu Idealizo (1965)

Eu idealizo esta terra
Para os seus filhos, toda inteira
Fresca e bela
Com o mar à frente
A cordilheira atrás
Com os seus rios e fontes
Arequeiras e palmeiras
Mas toda inteira para seus filhos
Ricos e pobres, não os haverá depois
Todos serão iguais e nobres
Como os são seus rios
Como os são seus montes
De mãos dadas irão para a frente
Serão como coqueiros
Seus irmãos, altivos e humildes
Lhanos e hospitaleiros
Como as suas casas sempre abertas
Vastos como o mar
Que os banha
E frescos como os arecais
E serão filhos dignos
Dessa natureza farta e bela
Paz e harmonia que aqui habita
Viverão nas suas almas
E a bondade que rescende
De cada canto desta terra
Impregnará a sua mente
E a honra e a dignidade
Não falsas, mas genuínas
Darão traços firmes
À sua estatura.
A visão dos Rishis
E o amor de Cristo
Guiarão seus passos
Para a frente
E para Índia será
Embora pequena
Fonte da beleza
E grandeza eterna
Tal idealizo esta terra
Para os seus filhos, toda inteira.

Carmo de Azavedo - Cristãos e Hindus (1965)

Cristãos e hindus de Goa fariam bem de ler – e digerir – o oportuníssimo artigo que na última edição de domingo de The Navhind Times publicou o Rev. Baltazar J. Pereira, missionário goês no norte da Índia, outrora Professor de Filosofia no Seminário de Allahabad e recentemente nomeado Administrador da Sé de Simla. Como vêem, não se trata – repito o que disse a propósito do discurso do Prof. Armando Menezes no Colégio do Carmelo em Margao e da palestra sobre o Secularismo Indiano ao microfone da AIR pelo Rev. Dr. Nicolau Pereira, largamente comentados nesta coluna – de um “adepto da religião professada por Nehru”, como aprouve a um plumitivo descrever-me ao publicar uma série de artigos sobre a religião do falecido Primeiro Ministro da Índia, aparentemente “agora convertido ao credo de Paulo VI”, segundo o mesmo plumitivo, ao ler a actual série sobre o Pontífice reinante. Antes de entrar na apreciação do artigo do Rev. Baltazar Pereira, devo dizer, entre parênteses, para desfazer equívocos que a religião é um negócio do foro íntimo de cada indivíduo, com que os outros nada têm que ver, que sou por inteira liberdade religiosa e que defendo e defenderei sempre – diga de mim o que disserem – o secularismo do Estado, hoje adoptado em todos as nações progressivas do mundo e que na Índia, especialmente, se tornou uma imperiosa necessidade em vista da sua sociedade pluralista.

Católicos fechados e abertos

Para o católico “fechado” (d’après Graham Greene) de Goa, que se arrepelou todo perante o namastê do Papa Paulo VI ao assomar à portada carlinga do Nanga Parbat, o seu Jai Hind em plena “catedral aberta” do Oval, as suas citações de Tagore, dos Upanixadas e de outras escrituras hindus e muito do que disse e fez durante os quatros dias da sua da sua histórica visita à Índia, afigurar-se-á também bastante estranho muito do que, à laia de preambulo, nos conta a seu próprio respeito o Rev. Baltazar Pereira: que em 1958 trocou de vez Goa pela então Índia Britânica para se fazer missionário “ao longo do sagrado Ganges”; que poucos anos mais tarde renunciou à cidadania portuguesa para se naturalizar indiano; que julgou ter realizado o seu sonho quando um belo dia foi escolhido para trabalhar “no próprio coração hinduísmo – em Benares”; que foi para ele motivo de grande alegria ser acolhido por hindus em suas casa e recebê-los na sua, desfrutar a sua hospitalidade, mesmo de noite, e ser considerado por eles um membro distinto da sua família, assistir às suas funções sociais, mesmo as relacionadas com a religião, convidá-los para a ceia do Natal e outras refeições e enfim discutir com eles assuntos religiosos e outros, com mútuo proveito.

Três períodos distintos

Passa em revista o ilustre articulista três períodos sucessivos, mas distintos, da história de Goa, no que diz respeito às relações entre hindus e cristãos: - o períodos anterior a 1928, isto é correspondente à sua mocidade, antes da sua saída de Goa; o período de 1928 a 1961, coincidente, mais ou menos, com a ditadura de Salazar; e o período pós-libertação. No primeiro período, diz, notava-se uma inércia mortal entre os hindus que, como um todo, tinham pouco influência na vida pública e os cristãos que, embora ocupando a maior parte dos cargos do Governo, pareciam satisfeitos com o status quo, havendo pouco intercâmbio social entre uns e outros, mas sem animosidade de parte a parte, antes uma espécie de amizade passiva que, oferecendo-se uma ocasião, podia dar lugar a atitude útil. O regime de Salazar teria coincidido com uma nova era na história política, económica, social e religiosa de Portugal e produzido também mudanças em Goa: melhoramentos económicos, um reajustamento proveitoso entre o Estado e a Igreja e um despertar entre os hindus. Finalmente, no terceiro período, que estamos a atravessar, estaríamos a presenciar o rompimento dos laços que uniam hindus e cristãos cedendo o lugar a mútua desconfiança.

Separação do Estado e da Igreja

Antes de prosseguir, convinha corrigir um erro factual no artigo do Rev. Baltazar Pereira: o despertar dos hindus de Goa não foi obra do regime salazarista, implantado em 1928, mas da República democrática, proclamada em 1910. Com efeito, foi a partir de 1910, com o baquear da Monarquia e a implantação do regime republicano, que decretou a Separação do Estado da Igreja, que os hindus de Goa começaram a desfrutar inteiro igualdade de direitos e de oportunidades, como deixou registado o saudoso António de Noronha na sua excelente memória “Os Indus de Goa e a República Portuguesa”. O governo de Salazar, com a assinatura da Concardata e do Acordo Missionário, representou um retrocesso sob este ponto de vista pois se não restabeleceu o estado de coisas anteriormente existente, procurou de certo modo identificar a Igreja com o seu regime ditatorial; e se, para nos servirmos das palavras do distinto articulista, este reajustamento das relações do Estado e da Igreja foi proveitoso àquele, foi pelo contrário prejudicial a esta por diversos motivos. Foi só por conveniência politica local que os hindus de Goa começaram a ganhar ascendente na burocracia, não a partir de 1928, mas nos últimos cinco ou seis anos antes da libertação.

Repostos os factos no seu devido lugar, prossigamos na análise do artigo do Rev. Baltazar J. Pereira na última edição de The Navhind Times, sob o título de Hindus and Christians in Goa Must Stand Together. O ilustre articulista diz que a sua recente visita a Goa foi uma completa desilusão e que não pôde deixar de observar que estão a romper-se os laços que uniam cristãos e hindus em Goa. Espraia-se em seguida em largas considerações, diz-nos que visitou quase toda a Índia, do norte ao sul e do este ao oeste, e conheceu os seus povos (usando a palavra “povos” deliberadamente plural), que visitou também Portugal e a Espanha, a Suíça, a Itália, França, Inglaterra, e Irlanda e os Estados Unidos da América e que, em sua opinião, nenhum país é capaz de rivalizar com Goa no conjunto dos seus dons e potencialidades; a sua beleza estética, as qualidades maravilhosas do seu povo, entre os quais cumpriria mencionar a mescla das culturas do Oriente, do Ocidente, as suas riquezas naturais.

Um Estado-Modelo

Onde quer que se econtrem os goeses – salienta o Rev. Baltazar Periera - conquistaram um excelente nome para si e para a sua terra, com as mais esplêndidas potencialidades para reajustamento, a sua amabilidade, a sua inteligência e a sua honestidade acima do normal, o que outros povos e governos acabaram por apreciar e recompensar. Alem disso, Goa é terra rica em peixe, vegetação e minerais, e com um pouco de desinteresse no serviço e uma administração inteligente baseada no amor justo pela terra pode ser convertida não só num território auto-suficiente, mas benfeitor de outros estados na Índia, De facto, conclui, embora seja de exíguas dimensões e com reduzida população, Goa pode ser transformada num estado modelo. Mas – e é um grande mas – os goeses parecem não reconhecer as qualidades de que estão dotados, não ter confiança em si mesmos e, com a mútua desconfiança e receio entre hindus e católicos, a maravilhosa unidade que existia está em vias de desaparecer.

Quatro hipóteses

Tentando explicar as razões da actual tensão comunal em Goa aventura o distinto articulista quatro hipóteses: 1) receio de dominação de uma comunidade por outra, receio explorado por elementos perniciosos de fora de Goa; 2) incapacidade da parte dos goeses, habituados a um estilo de vida europeu continental, de se adaptarem ao estilo de vida indiano ou inglês; 3) obra de inimigo de fora de Goa que semeou a cizania entre os ignorantes e esta se espalhou por toda a sociedade goesa; 4) todos os três factores combinados. Cabe aos goeses, hindus e cristãos, analisar a causa, diz o Rev. Pereira, pois só então poderão cortar o mal pela raiz. Vivemos, acrescenta, numa era de ecumenismo. O Congresso Eucarístico Internacional de Bombaim provou que hindus e cristãos podiam unir-se e trabalhar juntamente pela sua prosperidade. A Exposição das Relíquias de S. Francisco Xavier também demonstrou que hindus e cristãos apreciam o que de bom existe e podem congraçar-se. Aos líderes, sobretudo, dentre hindus e cristãos compete fortalecer os laços de união entre as duas comunidades, vencendo os preconceitos infundados. Só então, diz, Goa e os goeses prosperarão. Aliás, o inimigo, o lobo sob a pele do cordeiro, se aproveitará da desunião para destruir o que de verdadeiro, bom e belo existe em Goa. Hindus e cristãos, que ouçam estas palavras do Rev. Pereira.

Juliana Cordeiro Monteiro - Para Onde? (1965)

Folha despegada
Ao sopro do vento,
Para onde vais tu,
Assim azoinada?
Sem rumo nem norte,
Do monte ao vale,
De ravina em ravina,
Assim à sorte...
Ao sabor da rajada,
Destrambelhada,
Diz-me lá
Que procuras tu?
Onde o teu destino?
- Não sei para onde vou,
Nem mesmo atino
No que quero,
No que sou
Vou aonde me leva
O vento e a corrente
Aonde vai toda a gente
A folha do manjericão
Do cravo e jasmim.
Vou,
Quer queira quer não,
Porque não sei mandar em mim.

Friday 7 October 2011

Visnum Porobo Sincró - Remanso (1963)

Brisa suave, aroma inebriante revigorador
O gado pressuroso caminhando para o lar
Os transeuntes, no passo apressado, a correr
Atenção concentrada para o repouso ansiado!
Tudo aqui cheira paz, as agruras fogem
Desaparece o torpor citadino cobrindo novo alento
Os pássaros calcurreando no firmamento
Avançado velozmente, ao seu lar longínquo dirigem
Para gozarem no lar o repouso almejado,
Para ratear os grãos adquiridos afanosamente
A deleitarem satisfeitos com o chilreio dos filhinhos
Como pintos delicados os filhos – famílias esperam.
“O pai querido chegara trazendo guloseima
Contaremos a ele tudo o que sucedeu atrás dele.

RV Pandit - As Paredes Têm Ouvidos (1962)

Têm ouvidos
As paredes?

Não importa!

Basta
Que tenhamos
Procedimento liso…!
Para lhes tapar
A boca!

Thursday 29 September 2011

RV Pandit - Cantei (1969)

Não olhas para as linhas
Dos meus versos
Nem para as palavras
Olhe para o seu sentido
Olhe para o quadro
E não a confusão das linhas

O artista traça linhas
Diversas, diferentes…
Verticais, obliquas, horizontais
Aproximadas, afastadas
Longas, curtas
Entrelaçadas…
Larga no meio espaço branco
Linhas paralelas, linhas divergentes,
Linhas convergentes, escuras
Umas dando relevo, outras sombra
Linhas negras, fundo branco
Linhas brancas, fundo negro...

É assim o quadro da vida humana
Sobre o fundo branco da existência
Linhas de prazeres e dores
Esperanças e desesperos
Amor e ódio
Bondade e inveja
Linhas de formas diversas
Brilhantes e escuras
Todas juntas perfazem o quadro
Da vida humana
O fundo da existência não importa...
As linhas dão sombra e relevo
Profundidade, largura, altura
Beleza e fealdade
Às duas dimensões do quadro
Dão a ilusão da terceira dimensão
Ao quadro de vida e morte
A ilusão de vida eterna
E, o que é importante,
Dão o sentido à vida...

Mas, o papel só não é quadro
Nem as cores, nem as linhas
As variedades de linhas não são quadro
Nem sombra, nem relevo
A confusão, labirinto de linhas, não é quadro
Nem é quadro a ilusão que
Essas coisas produzem

O quadro é tudo no conjunto
Assim é a minha canção.
A minha canção é o quadro
Da minha vida
Da minha vida relacionada
À dos meus amigos e inimigos
Tirai as linhas da canção
Ficarei “Eu”
Tirai a influência dos “Outros”
Será um Erro
Refinai as palavras
Ficará um resíduo
Das minhas palavras

Tirai a minha alma
A minha vida e a minha
Relação com o mundo,
Desaparecerá a minha poesia da minha canção
Ficará o pó das palavras
Leitor, a minha canção
É esquisita, extravagante
Minhas palavras, teu sentido
Meu espelho, tua imagem,
Ou vice versa
Eis a minha canção...

Minha cadência, tues tons,
Meu prazer, tua dor,
Meu ódio, teu amor
Meu pincel, tuas cores
Ou vice versa
Eis a minha canção

Nessa canção vê
Teu retrato, minha imagem
O tecido delicado da vida
Luz e sombra da Alma
Ou vice versa...

Mas se tu deitar fora
A tua simpatia
Para comigo
A poesia desaparecerá
Ficará somente... o papel
Um papel borrado, sujo
De se deitar fora!

Wednesday 28 September 2011

Cyrano Valles - Prelúdio (1976)

Homem!
Sê mais
Do que julgas!
Abarca
Nos teus punhos
Quadriláteros,
Todo esse
Infinito
Que o Céu não descobre!...

Homem!
TU
Microcosmo vivo,
És mais do que julgas!
Entre as estrelas-do-mar
E as estrelas do Céu
Ergues-te
Nas asas da Razão
Para desvendar
O segredo
Dos Deuses!

Homem!
A vida não mais
É do que um passo –
Uma ponte –
De ti depende,
Contigo só
Fica a decisão
De seres livre 
Ou eterno escravo
Da tua humana condição! 

Evágrio Jorge - Vimala Devi e a sua actividade cultural (1970)

A prometido é devido. Anunciei há dias a recepção do último livro de poesias de Vimala Devi, Hologramas e prometi referir-me a ele nestas colunas.

A literatura é o espelho da vida. As duas são inseparáveis como a figura e a imagem ou a figura e a sombra. Qualquer referência a Hologramas será abrupta se não me referir aos dois livros anteriores de Vimala Devi e mesmo ao pouco que sei da sua vida.

Vimala Devi nasceu numa família católica goesa de Britona, na outra margem do rio Mandovi, que espera ser um subúrbio de Pangim logo que se complete, o mais tardar no próximo ano, a mui demorada ponte. Nasceu em 1932. Fez a sua estreia neste jornal e no antigo vespertino “Diário da Noite”. Cerca de 1958 ter-se-ia abalado para Portugal, casada com um escritor português. Em 1960 fez uma viagem ao Brazil para organizar recitais de folclore goês, que também apresentou na RTP e na Emissora Nacional de Radiodifusão de Lisboa. Foi incluída no volume “Goa, Damão e Diu” da “Antologia da Terra Portuguesa”.

Vive presentemente em Londres, fazendo companhia ao seu marido que trabalha na secção portuguesa da BBC. Em Londres teve uma exposição individual de pintura e colabora assiduamente nos programas da BBC.

À parte os seus livros que serão objecto de detida referência mais adiante, Vimala Devi é conhecida de todos quantos escrevem este formoso idioma português pela correspondência individual que manteve com eles, pedindo este e aquele pormenor dos seus escritos para um importante estudo mesológico da literatura indo-portuguesa, de que é co-autora. Pelo grande empenho que ela tomou nessa obra – prometida para breve não há dúvida que ser que será um repositório exaustivo da actividade literária goesa em português.

Toda esta actividade operosa no campo de letras e artes cria jus à nossa admiração e estima. Cá está uma conterrânea colocada noutra conjunção de latitudes e longitudes – geográficas e outras – entretida num trabalho positivo, criador, tanto do benéfico de Goa como de Portugal. Temos que seguir-lhe o exemplo. Temos de fazer aqui em Goa qualquer coisa de positivo para encaminhar o trabalho literário dos poucos poetas, contistas, prosadores que ainda temos, para as grandes revistas e casa editoriais portuguesas do mundo. Temos que encorajar traduções da literatura clássica indiana e dos autores modernos indianos (RK Narayan, Rama Rao, Kamala Markandaya, Nayantura Shgal, Kushwant Singh, Raj Ananda e outros). Será fácil obter editores para essas obras. Já três livros de Kamala Markandaya – ‘Trabalho sem Esperança’, ‘Um Íntimo Furor’ e ‘Um Silêncio do Desejo’ – estão a circular em tradução em Portugal e Brasil há alguns anos.

Outro trabalho que urge é encorajar a nova geração a aprender o português. No meu tempo de estudante os jornais dedicavam páginas para o tirocínio literário da juventude – Gente Nova, Página da Mocidade e Os Novos eram os títulos destas páginas. Publicou-se também uma interessante revista O Académico. Na era pos-libertação, a atracão do Governo e da sociedade há de naturalmente concentrar-se em incrementar o aprendizado do inglês, hindi e marata, tão necessários para o intercâmbio vital com o resto da Índia. Isso não impede que os amigos da língua portuguesa – entre os quais eu sempre me contei – trabalhem em seu prol, nas linhas indicadas. Mas andamos entretidos noutras contradanças... de êxitos nulo.

Não que o Governo não esteja a auxiliar, por muito que pese aos detractores dele. A “All-India Rádio” de Pangim tem um programa literário semanal para o qual os escritores locais são convidados e pagos. A Universidade de Bombaim sempre veio aceitando a língua portuguesa como língua de estudo. Agora o Post-Graduate Centre de Goa – núcleo da futura Universidade de Goa – tem uma Secção de Português. Os vários Colleges ensinam português e se muitos estudantes não se aproveitam desta facilidade, a culpa do excessivo espírito oportunista da nossa gente...

Desculpem-me esta digressão. Reina hoje tal confusão de ideias no nosso meio que se fica obrigado a aproveitar de casa oportunidade para desanuviar as mentes das muitas dúvidas e suspeições que nelas se encastelam...

Fica para a próxima vez a apreciação dos livros de Vimala Devi.

Part 2

O livro de contos ‘Monção’ da Vimala Devi é quase uma versão do seu livro de versos Súria em outra modalidade literária. Nos treze contos que este livro encerra, a vida goesa está retratada com fidelidade – incluindo os hindus e cristãos com as suas inevitáveis castas, e os paklé e os descendentes que desapareceram já do nosso cenário.

O conto ‘O Genro-Comensal’ lembra-nos do interessante romance de Gip, ‘Jacob e Dulce’, com as suas peripécias na cidade de Breda (Bordá). Lança muita luz sobre a forma como se arranjam os casamentos em Goa, começando por indagar a casta dos futuros nubentes, os seus teres e haveres, como se estabelece o genro-comensal (ghor-zanvoim) e como ele tem que sacrificar uma grande parte da sua personalidade em troca dos bens da noiva.

Nattak, Dhruva, Pandmini, A Droga, Fidelidade, estes contos revelam conhecimento da vida e psicologia hindu. A vida dos pescadores também está bem retratada. Na “Recordação do Tio Salú”, um pescador velhinho que morreu no dia seguinte ao Natal, Vimala Devi desabafa mais uma vez a sua saudade pela terra natal:

“Um templo de saudade pode chamar-se a tudo que trago dentro de mim. Gira à minha volta, agora em torvelinho – um torvelinho – um torvelinho que dói – toda a minha infância na velha aldeia à beira do Mandovi, onde o tempo parece que tinha parado e se vivia como mil anos atrás, como sempre.”

E pouco mais alem:

“Boa aldeia, boa gente, bons manducares, pescadores, curumbins, farazes, velhos e velhas, católicos, hindus, rapazinhos de langotim sujo com quem tanta vez joguei a cabra-cega ou os goddés, rostinhos morenos e vivos, que me davam gostosos chinchré dos tamarindos para roer na escola”.

Um outro aspecto desta saudade pela terra natal apresenta-o a escritora no conto “O Futuro e o Passado”, em que Carlos Sequeira, depois de fazer muito dinheiro na África, passa a matutar:

“... Tentou recordar a velha casa, as ruas esburacadas da aldeia, os manducares tristonhos, os curumbins, as suas canções alegres... De que lhe servia ser rico, de que lhe servia de ser uma pessoa importante numa terra que não era a sua, onde não havia ninguém com quem tivesse brincado em criança?...”

É triste comentário à vida dos cristãos de Goa o facto de que a escritora não pode retratar fielmente a sua vida sem trazer à baile o facto de eles estarem divididos em brâmanes, chardós e sudras. No conto “Os filhos de Job”, a forreta de Lavin-bai, quando ligeiramente admoestada pelo Dr. Caxinata sobre os seus deveres sociais, fulmina nestes termos:

- “Defende a dignidade desta gente, esquecendo-se da minha, que é superior. Repare que sou brâmane, como o doutor!...”

Há problemas a que a Libertação põe termo, como o súbita pretensão do descendente Eucaristiano de passar a ser europeu, a excessiva humidade e submissão dos manducares, cujo simples gesto de se sentarem nas cadeiras era ressentido, a exploração da mão de obra (cfr. ‘Vénus e os seus braços’).

No conto ‘A Droga’, um dos protagonistas pergunta enfurecido: “Outra vez a droga! Sempre a droga para finalizar o amor entre uma católica e um hindu!...”

Porque não poderá ser de outra maneira legal, sem vergonhas nem drogas?

Rosa começou a soluçar sobre peito de Caxinata.”

Antes, se não fosse a droga, era a conversão dum dos protagonistas à religião doutro, que era a mais das vezes a religião católica.

Que solução iria a Libertação dar a este problema de boy meets the girls of his liking? A solução ideal seria cada um manter-se na religião que professa e em que acredita. Porque só assim formaremos uma sociedade única, indiana, na base da nossa nacionalidade. Fora de Goa os goeses, tanto hindus como cristãos, já se casam para além de suas sociedades e de suas castas. Os hindus goeses estão casados com panjabis, maisoreanas, maharasatrianas, etc. Os católicos, entre cristãos de outras denominações, sikhs, hindus e mussolmanos. Não levará tempo para o processo se desenvolver com a mesma velocidade portas a dentro...

Chego agora para o último livro de versos de Vimala Devi, Hologramas, Edições Atlântida Editora de Coimbra, o livro é um luxo de produção. Quarenta páginas em papel espesso, capa branca envernizada, mas os poemas são curtos, diminutos, e todos se lêem em cerca de dez minutos.

Mas o carácter do livro é totalmente diferente dos primeiros dois. Já não é a Vimala indiana-goesa, que fala, direi mesmo que nem sequer é a poetisa portuguesa. É um produto de Londres, desse Ocidente estranho hodierno cuja uma manifestação vemos hoje nos visitantes da nossa praia de Calangute.

Kipling dissera que o Oriente e o Ocidente nunca se encontrariam. Com o avanço do Oriente embora lento, nos domínios de Ciência e Tecnologia parecia que o abismo estava prestes a cobrir-se. Mas agora o Ocidente, cansado, parece afastar-se para domínios imprevistos...

Li e reli os poemas. Acho algo difícil compreendê-los. Talvez seja necessário viver-se nos meios que os inspiraram, para se compreender perfeitamente:

Cá vai um exemplo:

Ânsia telemetrica

Do espaço que foi pela curva do orbito do sonho metálico

Transicional

Ciclo nos passos de luz

De Apolo atrofísico

Compreenderam alguma coisa? Pois bem, tentem saborear este outro escolhido também à toa:

Em cada desejo

Subterrâneo mais um dia tenso

Como o desejo sem sexo

Que se mistura com fumo

De estupefaciantes

Cobrindo o vazio triste de néon

Aquém do sonho anfíbio

Que se transmuta em chamas

Podemos compreender vagamente que este tem alguma relação com a filosofia dos hippies.

Algumas criticas já saídas talvez nos ajudem a compreender o livro e a mudança operada na sua autora.

O poeta Mário António escreveu dele o que segue:

“Não é a poetisa de Goa que aqui vemos: simplesmente a poetisa, se se insistir em expressar uma radicação, a poetisa europeia (...) Trata-se de um livro profundamente europeu ou ocidental: percorrem-no – entre dezenas de referências à mitologia ocidental - as linhas de força de mitos que são os que ajudaram a definir a Europa ou a Ocidente, ao mesmo tempo que se propõem alguns dos mitos que são dos que já antecipam o seu futuro”.

O semanário “Debate” escreve que “Hologramas” é resultado de uma experiência de um mundo diverso do que inspirou os seus dois primeiros livros, um mundo, o europeu, no qual se sobrepõe a uma mitologia milenar mas ainda presente, uma mitologia que diremos ser já do futuro.”

E João Gaspar, que tivera palavras encomiásticas para o livro Súria, escreve a respeito do último livro dizendo que Vimala Devi pretende:

“... com base em experiências de poesia inglesa, superar o condicionalimso pós-baudelaireano. Com efeito, é em Hologramas de Vimala Devi, residente em Londres, que se manifesta qualquer coisa como um refluxo de inspiração científica, associação, em breves esquemas métricos, de reacções possivelmente assimiladas a fenómenos físico-psiquicos...”

“... O que tudo prova mais uma vez que o goês é destro na assimilação das culturas alheias e é capaz de mostrar-se livre dos “conceitos atávicos” entre os povos no meio dos quais habita, sejam eles Kanadigas de Maiçore ou os Maharastrianos de Bombaim, os portugueses de Lisboa ou os Londrinos...”

Hats off à gentil senhora goesa que nos meios exigentes de Europa, mantém-se às alturas da sua rica tradição milenária e nunca se deixa de lembrar do seu torrão natal e sua gente.